Análise
Os desafios das empresas públicas em Angola: entre a tradição e a modernidade
As empresas públicas em Angola representam um dos pilares fundamentais do aparelho económico do Estado, responsáveis não apenas por assegurar serviços básicos à população, mas também por dinamizar sectores estratégicos como energia, transportes, telecomunicações, águas e recursos minerais. Contudo, apesar da sua relevância social e económica, estas empresas enfrentam enormes desafios de modernização, eficiência e sustentabilidade.
Segundo Osborne e Gaebler (1992), a administração pública moderna deve ser reinventada de forma a tornar-se mais empreendedora, flexível e orientada para resultados. No caso angolano, muitas empresas públicas ainda funcionam com uma lógica burocrática herdada da administração centralizada do pós-independência, marcada pela rigidez hierárquica, pela lentidão dos processos e pela falta de cultura de inovação. Assim, a sua transformação exige não apenas mudanças técnicas, mas sobretudo uma revolução cultural e institucional.
1. Reengenharia e a Urgência de Quebrar a Burocracia
A reengenharia surge como um conceito central no debate sobre modernização. Hammer e Champy (1994) definem-na como o repensar fundamental e a reestruturação radical dos processos, de modo a alcançar melhorias substanciais em custos, qualidade e rapidez. Para Angola, isto implica romper com o excesso de departamentos estanques e privilegiar uma visão de processos integrados, geridos por equipas multidisciplinares.
No entanto, a realidade das empresas públicas angolanas ainda é marcada por estruturas piramidais, onde as decisões concentram-se no topo, deixando pouco espaço para inovação. Um exemplo claro pode ser encontrado no sector da energia, em que a Empresa Nacional de Electricidade (ENE) e outras entidades enfrentam dificuldades em fornecer serviços com qualidade, não tanto por falta de recursos, mas por ineficiência processual e centralização decisória.
2. Terceirização: Entre Eficiência e Nepotismo
A terceirização é outro instrumento estratégico de gestão, quando bem aplicado. Quinn e Hilmer (1994) defendem que terceirizar permite às organizações focarem-se na sua missão principal, reduzindo custos e aumentando a especialização. Porém, em Angola, a terceirização tem frequentemente assumido contornos de fragilidade: contratos com empresas de fachada, preços inflacionados e serviços de baixa qualidade, muitas vezes escolhidos por critérios de proximidade política em vez de mérito técnico.
O desafio passa, portanto, por transformar a terceirização num verdadeiro instrumento de eficiência, adoptando modelos de análise make or buy, onde se pese racionalmente o que deve ser feito internamente e o que pode ser delegado. Sem transparência e auditoria independente, a terceirização continuará a ser um espaço fértil para corrupção, como já assinalou o Banco Mundial (2019).
3. Comércio Electrónico e a Resistência à Digitalização
O comércio electrónico e a transformação digital constituem o eixo mais urgente da modernização. Kotler e Keller (2016) lembram que a digitalização não é uma opção, mas uma necessidade para qualquer organização que pretenda manter relevância no século XXI.
Em Angola, a maioria das empresas públicas ainda obriga os cidadãos a deslocações físicas, filas longas e processos lentos para aceder a serviços básicos. Enquanto no sector privado já surgem soluções digitais inovadoras, no sector público a transformação digital avança a passos lentos, muitas vezes travada por resistência cultural, falta de investimento em infra-estruturas e défice de competências digitais.
Experiências africanas como a do Ruanda mostram que é possível mudar este cenário. O Governo ruandês implementou o portal “IremboGov”, que digitalizou mais de 100 serviços públicos, reduzindo drasticamente a burocracia e aumentando a transparência (World Bank, 2020). Angola poderia seguir exemplos semelhantes, acelerando a sua integração na economia digital.
4. Benchmarking: A Cultura de Aprender com os Melhores
O benchmarking é um dos instrumentos mais eficazes de aprendizagem organizacional. Camp (1989) sublinha que o benchmarking implica comparar práticas e resultados com empresas líderes, adaptando as melhores soluções ao próprio contexto. No entanto, em Angola, observa-se uma forte resistência em olhar para fora.
As empresas públicas continuam a operar em modelos isolados, raramente integrando experiências de sucesso internacionais. Como afirma Senge (1990), organizações que não aprendem tornam-se incapazes de se adaptar às mudanças. Neste ponto, seria fundamental que Angola estabelecesse protocolos de cooperação com empresas públicas de referência mundial — como a EDP em Portugal ou a Eskom na África do Sul (apesar dos seus problemas de gestão, ainda um caso de referência em escala de produção).
5. Alianças Estratégicas e Parcerias Público-Privadas
As alianças estratégicas e as parcerias público-privadas (PPPs) constituem alternativas importantes para modernizar e financiar empresas públicas. Hitt, Ireland e Hoskisson (2017) defendem que alianças aumentam a capacidade de inovação e reduzem riscos.
Em Angola, contudo, a experiência com PPPs tem sido tímida, limitada e, muitas vezes, permeada por falta de regulação clara. A confiança entre o Estado e o sector privado permanece baixa, o que dificulta colaborações produtivas. A título de comparação, países como Moçambique e Cabo Verde têm avançado em modelos de PPPs no sector da energia e das telecomunicações, conseguindo atrair investimento externo sem perder o controlo estratégico dos serviços.
6. Foco no Mercado: Do Produto ao Cidadão
Peter Drucker (1999) é categórico ao afirmar que “a finalidade de um negócio é criar um cliente”. No caso das empresas públicas, a finalidade deve ser criar valor para o cidadão. No entanto, a realidade angolana é marcada por uma inversão de prioridades: muitas vezes, as empresas públicas concentram-se em garantir a sobrevivência das estruturas internas e não em satisfazer o utente.
Este distanciamento gera desconfiança e alimenta a imagem negativa das instituições públicas. Um exemplo prático pode ser visto na gestão da água e saneamento, onde, apesar dos investimentos, o cidadão continua a sofrer com a irregularidade dos serviços. O foco deveria ser inverter a lógica, organizando os serviços de acordo com as necessidades da população e os segmentos de mercado, adoptando modelos de escuta activa e participação comunitária.
7. Globalização: Desafios e Oportunidades
A globalização trouxe novos padrões de competitividade, inovação e integração económica. Friedman (2005) destaca que o mundo “achatou-se”, eliminando barreiras entre mercados. As empresas públicas angolanas, contudo, permanecem centradas numa lógica de mercado local, perdendo oportunidades de inserção regional e global.
A adesão de Angola à Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA) abre espaço para que empresas públicas angolanas se expandam e estabeleçam parcerias em toda a África. Contudo, sem modernização interna e sem padrões de qualidade internacional, dificilmente conseguirão competir.
8. Descentralização e Inovação Local
Por fim, a descentralização é uma das maiores urgências do sistema empresarial público angolano. Rondinelli (1981) sustenta que a descentralização aproxima as decisões das comunidades, aumentando a eficiência e promovendo soluções mais ajustadas às realidades locais.
Em Angola, a centralização em Luanda asfixia a autonomia das províncias e impede o florescimento de soluções inovadoras. Empresas públicas regionais poderiam ter maior capacidade de resposta se houvesse delegação efectiva de competências. A descentralização não significa fragilizar o Estado, mas sim torná-lo mais próximo e eficaz.
Finalmente, é importante referir que as empresas públicas em Angola vivem um paradoxo: são indispensáveis para a sociedade, mas enfrentam fortes críticas pela sua ineficiência e incapacidade de inovação. O futuro destas organizações dependerá da capacidade de romper com práticas arcaicas, adoptar modelos modernos de gestão e inserir-se no mercado global.
A literatura internacional é clara: reformas no sector público só são efectivas quando acompanhadas de mudança cultural, foco no cidadão e transparência (Osborne & Gaebler, 1992; World Bank, 2019). Angola tem diante de si a oportunidade histórica de transformar as suas empresas públicas em motores de desenvolvimento sustentável, competitividade e inclusão social.
Se falhar neste processo, continuará a carregar o peso de instituições ineficientes, incapazes de responder às exigências do século XXI. Se tiver coragem política e visão estratégica, poderá transformar as suas empresas públicas em símbolos de confiança, inovação e progresso para todo o continente africano.