Opinião
Liberdade religiosa ou proliferação descontrolada?

A proliferação desordenada de igrejas tem sido uma preocupação crescente em Angola nas últimas décadas. O país, caracterizado por uma diversidade religiosa significativa, tem assistido ao surgimento de inúmeras denominações e movimentos religiosos, muitos deles sem um controlo adequado e sem os requisitos necessários para garantir a segurança, a transparência e a sustentabilidade das suas actividades. O fenómeno é particularmente problemático porque coloca em risco a integridade das práticas religiosas, a segurança dos fiéis e a ordem pública. Além disso, a falta de um quadro regulatório eficaz pode facilitar a exploração da fé das pessoas vulneráveis.
Neste sentido, a adopção de um modelo regulatório eficaz, que combine liberdade religiosa com normas claras de funcionamento e fiscalização, é essencial para garantir que as igrejas desempenhem o papel que lhes é atribuído na sociedade sem comprometer a ordem e o bem-estar social.
1. O Contexto Global e Africano da Regulação Religiosa
A regulação da liberdade religiosa, em especial em contextos como o africano, revela-se um desafio complexo, pois envolve a conciliação entre a liberdade de crença e a necessidade de assegurar que as instituições religiosas não se tornem focos de abusos ou de manipulação da fé. Vários modelos de legalização de igrejas têm sido adoptados pelo mundo afora, e cada um traz consigo desafios e soluções distintas.
2. Modelos de Legalização e Regulação Religiosa
De maneira geral, os países adoptam três tipos principais de modelos para a legalização e regulação das igrejas:
1. Modelo de Registo Civil Simples: Este modelo é caracterizado pela exigência de um simples registo da igreja como uma associação religiosa, sem grandes requisitos ou fiscalizações. Países como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe adoptam este modelo, onde as igrejas apenas precisam registar-se oficialmente para obter reconhecimento legal. Este modelo é eficaz para garantir a liberdade religiosa, mas muitas vezes não impõe as condições necessárias para evitar a proliferação descontrolada de igrejas e práticas irregulares.
2. Modelo de Regulação Estatal Forte: Neste modelo, o Estado impõe critérios rigorosos para a criação de igrejas e exige condições mínimas de funcionamento. Países como Angola e Ruanda adoptaram modelos com características mais restritivas, onde as igrejas precisam comprovar um número mínimo de fiéis, apresentar estatutos formais e submeter-se a processos de fiscalização contínua. O governo exige ainda a qualificação mínima dos líderes religiosos e a garantia de que os locais de culto atendam a normas de segurança e higiene.
Segundo Casanova (2011), a regulação religiosa nos países contemporâneos deve ser uma prática de equilíbrio entre liberdade religiosa e responsabilidade social, visando evitar a proliferação descontrolada e os abusos. Este modelo visa assegurar que as igrejas não só promovam a fé, mas também contribuam de forma responsável para o desenvolvimento social.
3. Modelo de Religião Oficial ou Controlo Severo: Alguns países, como o Egipto e Marrocos, adoptam um modelo em que a religião oficial (Islão, no caso destes países) tem um papel predominante e onde as outras religiões são severamente controladas. Neste caso, a abertura de novas igrejas é restrita e frequentemente sujeita a regulamentações que visam a preservação do ordenamento religioso nacional. Este modelo, apesar de proporcionar um certo grau de controlo, limita severamente a liberdade religiosa e pode resultar em tensões sociais.
3. O Modelo de Regulação Estatal Forte em Angola: Avanços e Desafios
O modelo angolano, introduzido pela Lei nº 12/19 de 14 de Maio, que regula a Liberdade de Religião, Crença e Culto, representa uma tentativa de equilibrar a liberdade religiosa com a necessidade de assegurar que as igrejas operem de maneira legal, transparente e em conformidade com as normas de segurança e saúde. A Lei exige que as igrejas cumpram os seguintes requisitos para obter reconhecimento oficial:
A igreja deve possuir no mínimo 60.000 fiéis em pelo menos 12 das 18 províncias do país;
A igreja deve apresentar um estatuto doutrinário claro e organização formal;
Deve ter sede própria e um local de culto que cumpra as normas de segurança e higiene;
A igreja deve submeter-se à fiscalização do Instituto Nacional para os Assuntos Religiosos (INAR).
O autor Pereira (2020) defende que a regulação da liberdade religiosa em Angola deve ser uma prioridade de governança pública, porque sem um controlo adequado, o país corre o risco de ver proliferarem igrejas que não contribuem para o desenvolvimento espiritual e social da população, mas que apenas exploram financeiramente os fiéis. Este tipo de regulação é vital para proteger a população e garantir que as igrejas cumpram sua função social de maneira ética e responsável.
4. Lições de Modelos Africanos: O Caso de Ruanda
O modelo ruandês oferece importantes lições para Angola, especialmente em termos de qualificação teológica dos líderes religiosos e fiscalização constante das igrejas. Em 2018, o governo ruandês fechou mais de 6.000 igrejas, alegando que muitas delas não cumpriam com as condições mínimas de segurança, saúde e boa prática religiosa. A nova legislação exigiu que os pastores fossem formados em instituições teológicas reconhecidas e que os locais de culto cumprissem padrões rígidos de segurança e higiene.
Essa abordagem foi extremamente eficaz para garantir a segurança dos fiéis e evitar a proliferação de igrejas fraudulentas. Smith (2017) argumenta que a qualificação dos líderes religiosos é um aspecto crucial na construção de uma prática religiosa responsável e no fortalecimento das comunidades de fé. A criação de programas de formação teológica obrigatórios, como em Ruanda, é uma medida que Angola poderia considerar para garantir que os líderes religiosos possuam a competência necessária para guiar seus seguidores de forma ética e responsável.
5. A Criação de um Conselho para Certificação e Legalização: Uma Proposta Necessária
Além da fiscalização contínua e da qualificação dos líderes religiosos, Angola pode dar um passo crucial na melhoria do modelo regulatório, criando um Conselho do Instituto Nacional para os Assuntos Religiosos (INAR) que seja responsável não só pela legalização, mas também pela certificação dos ministros de Deus. Esse conselho deveria funcionar de maneira independente, com representantes de diferentes denominações religiosas e especialistas em direito, teologia e ética, e teria como missão:
1. Legalizar as igrejas: Validando aquelas que cumprem com as normas de funcionamento, garantindo que apenas as organizações religiosas idóneas e transparentes possam operar no país.
2. Certificar os ministros de Deus: Estabelecendo requisitos mínimos de formação teológica, ética e prática pastoral para aqueles que desejam assumir a liderança religiosa. A certificação seria obrigatória para que os líderes de igrejas possam exercer o ministério de forma legal e reconhecida pelo Estado, garantindo que os fiéis sejam guiados por líderes qualificados e responsáveis.
3. Fiscalizar a actividade das igrejas: Exigindo relatórios periódicos sobre as actividades sociais, financeiras e religiosas das igrejas, de modo a garantir que estas actuem dentro da legalidade e da ética.
A criação deste conselho é uma medida fundamental para evitar que a proliferação de igrejas sem idoneidade gere danos à sociedade, como fraudes religiosas e a exploração de fiéis vulneráveis. Como afirmou Martins (2019), é necessário estabelecer um sistema de certificação que proteja os direitos dos fiéis e assegure a seriedade das igrejas, tornando o processo de legalização mais transparente e rigoroso.
6. O Caminho a Seguir: Aperfeiçoando o Modelo Angolano
Embora o modelo angolano de regulação religiosa tenha feito progressos importantes, ainda existem áreas que precisam ser aperfeiçoadas. A fiscalização das igrejas é um aspecto fundamental que precisa de mais atenção. Como defendido por Santos (2021), um modelo de regulação eficaz não deve se limitar a um processo burocrático de registo, mas deve envolver uma fiscalização activa para garantir que as igrejas cumpram as suas obrigações legais, sejam transparentes nas suas actividades financeiras e desempenhem um papel positivo nas suas comunidades.
Além disso, Angola deve incorporar requisitos de qualificação teológica para líderes religiosos, assim como Ruanda fez, para assegurar que os pastores e outros líderes espirituais tenham uma formação sólida e reconhecida. Isto não só protegeria os fiéis, mas também garantiria que as igrejas fossem mais eficazes no seu papel de transformação social e espiritual.
7. Conclusão: O Melhor Modelo para Angola
Em Angola, o modelo ideal de regulação das igrejas é uma combinação de fiscalização activa, exigência de formação teológica, promoção de actividades sociais e a criação de um conselho de certificação dos ministros de Deus. Alinhando-se com as melhores práticas observadas em países como Ruanda, a criação deste conselho traria uma regulação mais rigorosa e eficaz, assegurando que apenas igrejas idóneas e líderes qualificados pudessem operar no país.
A regulação religiosa deve equilibrar liberdade de culto com responsabilidade social, garantindo que as igrejas não apenas cumpram com os requisitos legais, mas que desempenhem um papel significativo no desenvolvimento espiritual, social e comunitário do país. Santos (2021) defende que este modelo de regulação seria um marco para Angola, garantindo que as igrejas cumpram com a sua função de transformação e elevação espiritual, sem colocar em risco a segurança pública e a integridade dos fiéis.