Análise
Quem morre, quem lucra, quem cala com a necropolítica no Brasil
Os recentes acontecimentos nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, com mais de cento e vinte mortos e corpos abandonados em zonas de mata, reacendem a discussão sobre o papel do Estado e das elites económicas na produção da violência selectiva. Estas mortes não são episódios isolados; fazem parte de uma lógica estruturada, um padrão histórico que define quem merece viver e quem pode morrer.
Como escreveu Achille Mbembe, a necropolítica representa a capacidade do poder de decidir sobre a vida e a morte. O Estado escolhe onde a vida tem dignidade e onde vale menos do que uma suspeita. E essa escolha raramente é aleatória: é racial, territorial e económica.
1. Estado Soberano e o Direito de Matar: A Lógica da Necropolítica
Mbembe ensina que “o Estado moderno exerce a sua soberania sobretudo através do direito de matar”. Nas periferias urbanas, esse exercício assume forma militarizada e quase ritual: helicópteros, blindados, fuzis e um discurso oficial que transforma cadáveres em números e vítimas em suspeitos.
A violência é celebrada como vitória, enquanto o luto das famílias é silenciado. Fanon recorda que “o colonialismo destrói almas antes de destruir corpos”. A favela, tal como a colónia, é tratada como território a ser limpo, disciplinado e controlado à força.
2. O Silêncio do Luto e a Ordem da Violência
A dor das mães e o trauma colectivo não entram nos relatórios oficiais. A hegemonia do discurso securitário invisibiliza o sofrimento real. Segundo Bauman, a modernidade produz “resíduos humanos” e, nas periferias, estes resíduos são corpos negros, jovens, pobres, descartáveis para a lógica do capitalismo violento.
A sociedade naturaliza o massacre como mecanismo de ordem. A vida perde o valor quando a geografia a condena.
3. Crime, Capital e a Hipocrisia Financeira
Silvio Almeida foi directo ao afirmar: “O mercado financeiro quer o dinheiro do crime sem se sujar.”
E completa: “Não é só o crime que tenta chegar ao mundo formal; é o mundo formal que deixa capturar os lucros do crime.”
Não existe tráfico internacional sem bancos, nem quadrilha sem advogados sofisticados, nem dinheiro sujo sem paraísos fiscais e sistemas bancários permissivos. Loïc Wacquant já alertava que as periferias são “depósitos sociais” criados para conter os danos das desigualdades produzidas pelo capitalismo financeiro que enriquece com o submundo que diz combater.
A bala atinge o corpo favelado; o lucro repousa nos cofres do sistema financeiro global.
4. Segurança Pública ou Gestão da Morte
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil sublinhou que a segurança pública deve ser inteligente, estratégica e preservar a vida. Um discurso nobre, mas que enfrenta uma máquina policial que historicamente opera na lógica do extermínio.
Foucault lembrou que “o poder produz realidades”. E a realidade produzida nesses territórios é uma pedagogia da morte: o Estado não apenas falha, ele mata, selecciona, sacrifica.
A segurança torna-se espectáculo e o espectáculo legitima o terror estatal.
5. Media, Estigma e a Construção do Inimigo
A cobertura mediática reforça o mito da guerra justa contra o inimigo interno. O jovem negro da periferia é criminalizado antes de qualquer acto; a sua existência é suspeita. A violência torna-se política pública e narrativa moral.
A informação, que deveria iluminar, legitima o abate.
6. Resistir ao Sistema da Morte: A Luta pela Dignidade
Angela Davis afirmou: “Não basta não ser racista; é preciso ser antirracista.”
Da mesma forma, não basta lamentar as mortes; é preciso enfrentar a arquitectura económica, política e simbólica que as produz.
Isto exige:
✅ rastreamento financeiro rigoroso dos beneficiários do crime
✅ reforma policial e judicial orientada aos direitos humanos
✅ políticas públicas orientadas para a vida e não para a punição
✅ inclusão social e territorial efectiva
✅ responsabilização política pelo sangue derramado
Defender a vida tornou-se acto político radical.
Conclusão: Quem Morre, Quem Lucra, Quem Cala
As periferias sangram para que a alta finança prospere. A morte é contabilizada como ordem; o luto como ruído social. O jovem negro é o inimigo interno, enquanto o verdadeiro beneficiário da violência veste fato, dirige viatura de luxo e movimenta capitais nas bolsas internacionais.
Como conclui Mbembe, “a vida tornou-se uma luta permanente contra a morte imposta pelo sistema”.
Num mundo onde o cadáver vira capital, proteger a vida negra, periférica e pobre é o mais profundo gesto de resistência.
A questão que se coloca agora é:
Vamos continuar cúmplices pelo silêncio ou escolheremos ser parte do levante que recusa a normalização da morte?
