Análise
Ouro em alta, Angola em baixa: a crise estrutural da política de mineração aurífera

O ouro voltou ao centro das atenções dos mercados internacionais, ao quebrar a barreira simbólica dos 4 mil dólares por onça, um feito histórico que confirma o metal precioso como o refúgio preferido dos investidores em tempos de incerteza económica e instabilidade geopolítica. Segundo o Jornal de Negócios, a valorização acumulada desde o início do ano ultrapassa os 50%, impulsionada por factores como as tensões entre grandes potências, a guerra na Ucrânia e em Gaza, e as dúvidas sobre a sustentabilidade das finanças públicas dos Estados Unidos.
Enquanto o mundo observa a ascensão do ouro, Angola parece ainda não ter descoberto o verdadeiro valor estratégico do seu potencial aurífero. O país continua dependente do petróleo como principal fonte de receita, num contexto em que o sector mineiro permanece subaproveitado, desarticulado e sem um modelo de governação eficaz das suas riquezas minerais.
1. A riqueza natural e o paradoxo da pobreza institucional
Como recorda Joseph Stiglitz (2002), “os recursos naturais podem ser uma bênção ou uma maldição, dependendo da qualidade das instituições que os administram”. No caso angolano, a riqueza mineira, ouro incluído, ainda não se traduziu em desenvolvimento sustentável nem em equilíbrio fiscal. O país enfrenta aquilo que Paul Collier (2007) designa como o “paradoxo da abundância”: quanto mais recursos naturais um Estado possui, maior tende a ser a sua vulnerabilidade à corrupção, à fuga de receitas e à má governação.
O Relatório de Desenvolvimento Africano (BAD, 2023) já alertava que, em muitos países da África Subsariana, incluindo Angola, menos de metade da produção real de ouro é formalmente declarada. Isto significa que grande parte do ouro extraído não entra nas estatísticas oficiais, reduzindo a capacidade arrecadatória do Estado e enfraquecendo as políticas públicas. A economia paralela do ouro mina a transparência e perpetua um ciclo de dependência e perda de soberania económica.
2. Licenças, exploração e responsabilidade social negligenciada
Um dos maiores entraves à consolidação de uma política mineira sustentável em Angola reside na atribuição pouco transparente das licenças de prospecção e exploração aurífera. A ausência de critérios claros e a limitada fiscalização sobre as empresas concessionárias abrem espaço para clientelismo, favoritismos políticos e exploração predatória, como assinala Carlos Lopes (2018) ao defender que “a má gestão das concessões mineiras é o ponto de partida de todas as desigualdades económicas africanas”.
Em muitas regiões auríferas do país, sobretudo nas províncias da Huíla, Huambo, Bié, Cuando e Cubango, as comunidades locais raramente beneficiam da exploração dos recursos existentes nos seus territórios. As promessas de emprego, desenvolvimento local e compensações ambientais transformam-se, na prática, em promessas incumpridas, enquanto as áreas exploradas sofrem degradação ambiental e perda de meios de subsistência.
De acordo com Alves da Rocha (2021), “a exploração mineira em Angola tem sido conduzida de costas voltadas para as comunidades, o que reforça a sensação de exclusão e de injustiça económica”. As empresas mineiras, sobretudo as de capital estrangeiro, não têm implementado políticas de responsabilidade social corporativa consistentes, nem canalizado parte das suas receitas para infra-estruturas básicas, saúde e educação das populações afectadas.
A Lei das Actividades Geológicas e Mineiras (Lei n.º 31/11) prevê a responsabilidade social das concessionárias, mas a sua aplicação continua frágil. A falta de fiscalização e de mecanismos de avaliação de impacto social e ambiental impede a materialização do princípio da “mineração com rosto humano”, defendido por Jeffrey Sachs (2015) como condição indispensável para o desenvolvimento inclusivo.
3. O défice de rastreabilidade e o desafio da transparência
A fiscalização e a rastreabilidade digital da produção mineira são hoje elementos essenciais de uma boa governação dos recursos naturais. Carlos Lopes (2016), economista guineense e ex-secretário executivo da UNECA, defende que “a riqueza mineral africana precisa ser digitalmente governada, sob pena de continuar a enriquecer o estrangeiro e empobrecer o nacional”.
Em Angola, apesar das boas intenções constantes nas estratégias do Ministério dos Recursos Minerais, Petróleo e Gás, a fiscalização continua fragmentada, sem integração tecnológica entre os órgãos locais, provinciais e centrais. A ausência de um Sistema Nacional de Monitorização Digital da Cadeia Mineira faz com que o ouro extraído em muitas zonas do interior nunca chegue a ser registado oficialmente.
Segundo a Transparency International (2024), o controlo ineficiente dos fluxos mineiros representa uma das principais causas de perda de receitas nos países ricos em recursos, com impacto directo sobre o orçamento público e as políticas sociais. No caso angolano, cada quilograma de ouro não declarado é um hospital não construído, uma escola sem professores, uma estrada por asfaltar.
4. Do extrativismo à inteligência mineira
O desafio de Angola não é apenas extrair ouro, é extrair inteligência a partir da sua extracção. Como observa Jeffrey Sachs (2015), “a era dos recursos naturais precisa dar lugar à era da inteligência dos recursos”. Isso implica utilizar tecnologias de informação e análise de dados para monitorar em tempo real a produção, circulação e exportação do ouro, garantindo a rastreabilidade, a tributação justa e a transparência.
Uma proposta concreta seria a criação de uma Autoridade Nacional de Recursos Minerais Digitalizados (ANRMD), sob tutela do Ministério dos Recursos Minerais, Petróleo e Gás, responsável por um Sistema Integrado de Gestão e Comercialização do Ouro (SIGCO). Este sistema permitiria cruzar dados de produção, transporte e exportação, assegurando que cada grama extraída gere benefícios tangíveis para o Tesouro Nacional.
5. O ouro e as finanças públicas
O Banco Mundial (2022) sublinha que a boa gestão dos recursos minerais pode aumentar em até 30% a arrecadação fiscal em países em desenvolvimento, desde que sejam implementados mecanismos de transparência e responsabilização. No contexto angolano, a integração do sector mineiro formal na estrutura das receitas não petrolíferas é fundamental para garantir a estabilidade orçamental e reduzir a vulnerabilidade às flutuações do preço do petróleo.
Alcides Vieira (2021), economista moçambicano, argumenta que “os recursos naturais só se transformam em riqueza pública quando submetidos a políticas fiscais inteligentes e inclusivas”. Isto significa que Angola deve abandonar a lógica meramente extrativista e adoptar uma abordagem de governação mineira com valor acrescentado, capaz de transformar a extracção em desenvolvimento local e nacional.
6. Conclusão: da mina à mente
Num momento em que o preço do ouro poderá alcançar 4.900 dólares por onça até 2026, segundo previsões do Goldman Sachs, Angola tem diante de si uma oportunidade histórica. Mas essa oportunidade só se converterá em prosperidade se houver vontade política, capacidade institucional e uma revolução digital na gestão mineira.
Como enfatiza Paul Collier (2010), “a verdadeira riqueza de um país não está no subsolo, mas nas mentes que sabem administrá-lo”. O ouro é apenas matéria; o desenvolvimento é espírito. E o espírito de uma boa governação manifesta-se quando o Estado consegue transformar o brilho do ouro em luz para o seu povo.
Angola precisa deixar de ser um país que “extrai”, para se tornar um país que “transforma” e “valoriza”. A política mineira deve ser revista à luz da transparência, da rastreabilidade digital e da justiça fiscal, para que cada pepita de ouro extraída das terras angolanas brilhe também nas contas públicas e no rosto dos cidadãos.