Opinião
Juízes por mérito ou por amizade? O risco de politização no Tribunal de Contas de Angola
A recente abertura do concurso curricular para o provimento de quatro Juízes Conselheiros do Tribunal de Contas da República de Angola, tal como anunciado no comunicado institucional de 20 de Junho de 2025, é um acontecimento que deve ser acolhido com grande sentido de responsabilidade e expectativa cívica. Trata-se de um processo que pode representar um avanço significativo para a institucionalização da meritocracia no sistema judicial e para o fortalecimento da magistratura financeira. No entanto, este avanço só será efectivamente alcançado se forem observadas, com rigor, certas prudências fundamentais no decurso do processo, sob pena de se comprometerem os princípios da legalidade, imparcialidade e eficácia que regem a jurisdição do Tribunal de Contas.
A Tentação das Acomodações Políticas
Nos sistemas democráticos, a nomeação de altos magistrados deve ser guiada pelo primado da competência técnica, da experiência comprovada e da idoneidade moral. No entanto, como assinala Boaventura de Sousa Santos (2003), “a justiça é uma construção social marcada por correlações de forças, e os aparelhos judiciais não estão imunes às disputas de poder”. A tentação de transformar concursos públicos em instrumentos de acomodação política, ou mesmo de recompensa partidária, compromete de forma grave a independência do poder judicial.
O Tribunal de Contas, enquanto órgão de soberania responsável pela fiscalização prévia, concomitante e sucessiva das contas públicas, não pode ser capturado por lógicas de partidarização. Tal como defende Luís Roberto Barroso (2010), “a independência judicial é o alicerce do Estado de Direito e se traduz na possibilidade de o juiz decidir de acordo com sua consciência jurídica, sem interferência de qualquer natureza”. Logo, quaisquer tentativas de manipular concursos para inserir perfis políticos, mesmo que disfarçados sob uma aparência técnica, devem ser repudiadas com veemência.
O Risco de Diminuição da Qualidade Decisória
A selecção de magistrados sem a devida preparação técnica e isenção pode ter impactos nefastos sobre a qualidade das decisões judiciais. Um Juiz Conselheiro sem domínio das complexidades da gestão financeira pública, da contabilidade nacional, do direito financeiro e das normas internacionais de auditoria não poderá assegurar a função de controlo com o rigor necessário. Como refere Carlos Blanco de Morais (2014), “a jurisdição financeira exige mais do que conhecimento jurídico; requer compreensão profunda do sistema económico-administrativo e das práticas da administração financeira do Estado”.
Neste sentido, a qualidade técnica deve ser o critério de ouro. É necessário valorizar candidatos com trajectórias consistentes no domínio das finanças públicas, da gestão orçamental, da auditoria, do controlo interno e da governação. O concurso curricular, embora mais racional e meritocrático do que outras formas de selecção, pode tornar-se frágil se for conduzido com superficialidade ou sob critérios meramente formais.
A Centralidade do Mérito e da Transparência
A prudência exige que os órgãos responsáveis pela condução do processo — nomeadamente o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) e o júri do concurso — actuem com plena independência, neutralidade e transparência. Como salienta Norberto Bobbio (1992), “a democracia não é apenas o governo da maioria, mas a obediência às regras do jogo”, e uma dessas regras essenciais é a igualdade de oportunidades no acesso às funções públicas.
O mérito, neste caso, não se resume à posse de um diploma universitário ou ao número de anos de serviço, mas à demonstração de capacidade crítica, responsabilidade ética e compromisso com a causa pública. A avaliação curricular deve ser substancial, com análise qualitativa das experiências profissionais e contributos dos candidatos para a causa da justiça financeira. Como refere Dworkin (1986), “a integridade institucional só é possível quando as decisões são tomadas com base em princípios e não em conveniências”.
Reforçar o Papel das Instituições de Fiscalização
A nomeação de Juízes Conselheiros sem o devido cuidado pode não apenas minar a credibilidade do Tribunal de Contas, mas também enfraquecer todo o sistema de controlo das finanças públicas. A nomeação baseada no mérito técnico fortalece a prevenção da corrupção, a responsabilização dos gestores e a boa governação. Segundo Susan Rose-Ackerman (1999), “a força das instituições de controlo é um dos principais indicadores da qualidade democrática e da eficácia do combate à corrupção”.
Assim, os concursos devem ser vistos como instrumentos estratégicos para elevar a qualidade da acção jurisdicional e não como mecanismos de legitimação de nomeações politizadas. A nomeação posterior pelo Presidente da República, prevista no artigo 16.º do regulamento do concurso, deve respeitar o espírito e a letra do processo, e não subverter os seus resultados.
Conclusão: A Responsabilidade da Escolha
O momento exige responsabilidade institucional, coragem ética e visão estratégica. O Tribunal de Contas tem um papel central na arquitectura do Estado, especialmente num contexto em que o país enfrenta desafios críticos de governação, transparência e eficiência na gestão dos recursos públicos. O concurso curricular ora anunciado pode marcar um novo ciclo de confiança e qualidade institucional — desde que se observe, com rigor, a prudência de colocar o mérito acima da conveniência, a competência acima da proximidade, e o interesse público acima dos interesses particulares.
A magistratura financeira deve ser um reduto de excelência, integridade e independência. A sua composição não pode ser o resultado de arranjos, mas sim de escolhas fundamentadas que garantam o respeito à Constituição, à lei e, sobretudo, ao povo angolano.