Análise
Compliance ou Conveniência? A crise de integridade no Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos

A construção de uma Administração Pública ética, transparente e responsável constitui um dos maiores desafios da governação contemporânea. Em Angola, as reformas administrativas e jurídicas dos últimos anos têm procurado promover uma cultura de integridade e conformidade, contudo, episódios recentes demonstram que o caminho ainda é longo.
O caso envolvendo o Cofre Geral da Justiça (CGJ) e o jornal Expansão em 2025 expôs publicamente as fragilidades da cultura de compliance e da governação institucional no seio do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos (MJDH), trazendo à luz preocupações sobre transparência, prestação de contas e conflito de interesses.
Segundo Treviño e Nelson (2021), a ética institucional não se limita ao cumprimento das leis, mas representa o compromisso contínuo das organizações com a verdade, a justiça e o interesse público. Esta premissa é essencial para compreender a gravidade do caso em questão.
2. O Contexto da Notícia: Fragilidade do Controlo Interno
De acordo com a publicação do jornal Expansão, o Cofre Geral da Justiça apresentou, em 2024, um défice orçamental de 2,9 mil milhões de kwanzas, um agravamento de 1.393% em relação a 2023. O relatório citado identificou pagamentos duplicados, receitas abaixo do previsto, falhas de controlo interno e despesas muito acima do orçamento, com destaque para viagens e serviços diversos.
Mais grave ainda, o auditor externo teria assinalado receitas processadas fora do Sistema Integrado de Gestão Financeira do Estado (SIGFE), sistema que, de acordo com o Decreto Presidencial n.º 232/10, visa garantir transparência, rastreabilidade e integridade na execução financeira pública.
Segundo Carroll (2020), a integridade financeira é o primeiro sinal da maturidade ética de uma instituição pública; sem controlo financeiro, não há confiança social possível. Assim, a simples suspeita de práticas fora do SIGFE fragiliza a credibilidade do órgão e indica possíveis brechas de compliance.
3. A Resposta Institucional e o Direito de Contraditório
Em reacção, o Cofre Geral da Justiça emitiu uma Nota de Imprensa a 14 de Outubro de 2025, repudiando as informações do jornal e classificando-as de falsas e descontextualizadas. O órgão alegou inexistência de auditoria conclusiva sobre desvio de fundos e reiterar que todas as suas receitas provêm exclusivamente de serviços públicos de justiça e que as despesas são realizadas em conformidade com a Lei da Contratação Pública e sob fiscalização do Tribunal de Contas.
Além disso, o CGJ denunciou violação do direito ao contraditório e de resposta, previsto no artigo 63.º da Lei de Imprensa (Lei n.º 1/17, de 23 de Janeiro).
Embora o contraditório seja um princípio essencial da comunicação ética, Ferreira (2018) alerta que a reacção defensiva de uma instituição não substitui a obrigação de transparência; o direito de resposta não apaga a necessidade de prestação de contas.
A nota, portanto, revela um posicionamento institucional de defesa, mas não apresenta evidências de auditoria independente nem de controlo externo efectivo, o que perpetua dúvidas sobre a consistência da gestão orçamental.
4. As Zonas Cinzentas: Conflito de Interesses e Falta de Independência
O ponto mais sensível do episódio está na sobreposição de papéis entre entidades fiscalizadoras e gestoras. A notícia menciona que, em 2024, a superintendência do Cofre Geral da Justiça teria sido assumida por um antigo presidente do Tribunal Supremo, em articulação com o Procurador-Geral da República. Esta ligação institucional, ainda que formalmente legal, suscita dúvidas quanto à independência da fiscalização financeira, uma vez que envolve figuras de topo do sistema judicial, o mesmo que deveria supervisionar a legalidade das contas públicas.
Conforme Gilman (2005), o conflito de interesses é o veneno silencioso da administração pública, porque mina a confiança dos cidadãos e transforma o dever público em interesse privado. Neste caso, a falta de clareza sobre a cadeia de comando e de auditoria pode representar uma violação indirecta dos princípios de integridade, imparcialidade e accountability previstos na Lei da Probidade Pública (Lei n.º 3/10, de 29 de Março).
5. A Cultura de Compliance e os Desafios Angolanos
A cultura de compliance público em Angola ainda se encontra em fase de consolidação. A maior parte dos órgãos da Administração Central opera sob uma lógica reactiva e burocrática, em vez de preventiva e ética.
De acordo com Trindade (2022), o compliance público deve ser visto como um sistema de valores e não apenas como uma lista de obrigações legais. O seu objectivo maior é transformar o comportamento organizacional e criar confiança entre o Estado e o cidadão.
No caso do CGJ, a ausência de comunicação transparente e auditoria independente reforça a percepção de que o compliance ainda é tratado como mera formalidade e não como estratégia de governação.
A OCDE (2020) recomenda que programas de integridade no sector público devem incluir mecanismos de denúncia segura, formação contínua em ética e avaliações regulares de riscos de corrupção e má gestão. Nenhum desses elementos é visível na resposta institucional apresentada.
6. Implicações para a Governação Pública
A situação do CGJ expõe uma tensão estrutural entre legalidade formal e integridade substancial.
Segundo Silva e Oliveira (2020), governação pública sem compliance é discurso; com compliance, é prática institucional. Isto significa que a simples existência de normas e decretos não garante uma gestão ética. O que assegura a legitimidade da Administração é a coerência entre discurso e acção, entre lei e prática.
A falta de mecanismos sólidos de controlo interno, associada a comunicações institucionais defensivas, indica risco de erosão da confiança pública, o que, segundo Behn (2001), compromete a própria eficácia governamental, pois a eficiência do Estado depende mais da confiança dos cidadãos do que da força das suas leis.
Além disso, a ausência de dados auditáveis e de relatórios públicos acessíveis contraria o princípio de transparência activa previsto na Lei de Acesso à Informação (Lei n.º 11/20), um dos instrumentos fundamentais de accountability democrática.
7. Caminhos para o Fortalecimento da Integridade Pública
Para superar o quadro de fragilidade ética e institucional revelado por este episódio, impõe-se um conjunto de medidas estruturais:
1. Auditoria independente e pública conduzida por entidades externas e com divulgação obrigatória dos resultados.
2. Criação de um Comité de Ética e Compliance no MJDH, com autonomia técnica e representação da sociedade civil.
3. Integração total e obrigatória de todas as operações financeiras no SIGFE, eliminando excepções e fluxos paralelos.
4. Implementação de um Programa Nacional de Integridade e Transparência, conforme as recomendações da OCDE (2020) e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003).
5. Formação obrigatória em ética pública para gestores e servidores, conforme defendem Ferreira e Gomes (2021).
6. Revisão do sistema de comunicação institucional, de modo a privilegiar a prestação de contas em detrimento da defesa política.
Essas medidas, combinadas, representam não apenas uma resposta às denúncias, mas um salto de qualidade na cultura de governação e aproxima Angola dos padrões internacionais de ética e integridade pública.
Finalmente, é importante reconhecer que o caso do Cofre Geral da Justiça demonstra que a cultura de compliance é o verdadeiro termómetro da maturidade democrática e administrativa de um Estado.
Quando há suspeitas de conflito de interesses e de má gestão, a resposta não pode ser apenas comunicacional. Deve ser institucional, técnica e ética.
Conforme Paine (1994), as organizações que vêem o compliance apenas como obrigação legal estão condenadas a responder crises; as que o veem como cultura constroem reputação e confiança. O Ministério da Justiça, enquanto guardião da legalidade, tem o dever moral e jurídico de ser exemplo de ética pública e transparência.
A consolidação de uma governação de integridade exige coragem institucional, liderança ética e vontade política. Mais do que negar irregularidades, é preciso demonstrar integridade, abrir as contas à fiscalização e tratar o compliance como pilar central da governação democrática.
Somente assim Angola poderá fortalecer a confiança pública e consolidar um Estado verdadeiramente justo, ético e responsável.