Opinião
Angola pode adoptar o capitalismo liberal sem sacrificar a protecção dos mais vulneráveis?
Angola encontra-se numa conjuntura estrutural e histórica que dificulta sobremaneira a adopção de um modelo de capitalismo liberal, tal como defende o novo Partido Liberal. Apesar de, teoricamente, o liberalismo económico prezar pela eficiência dos mercados e pela minimização da intervenção estatal, a realidade angolana apresenta desafios de dimensão que impedem uma transição abrupta para esse paradigma.
Em primeiro lugar, a questão da literacia e da qualificação da mão-de-obra revela-se crítica. Angola enfrenta, há décadas, desafios no sistema educativo que se reflectem em elevados índices de analfabetismo e numa formação profissional insuficiente para responder às exigências de um mercado altamente competitivo e inovador. Num contexto em que a população necessita, antes de mais, de um investimento maciço em capital humano, a aposta num modelo que pressupõe uma cidadania economicamente activa e preparada torna-se inviável. Sem os conhecimentos e as competências adequadas, os cidadãos angolanos não conseguem participar plenamente num sistema que se apoia na livre concorrência e na competitividade global, aumentando, assim, a vulnerabilidade social.
Para além das questões educacionais, o quadro macroeconómico angolano é marcado por uma dependência excessiva das receitas provenientes dos recursos naturais, nomeadamente o petróleo. Essa dependência cria uma instabilidade significativa, sujeitando a economia a choques externos e à volatilidade dos preços internacionais. Num cenário de mercados globais que oscilam, a liberalização dos mercados e a redução da intervenção estatal, como propõem os modelos de capitalismo liberal, podem aprofundar as desigualdades, ao invés de promover um desenvolvimento inclusivo. A retirada de subsídios, orientada por conselhos e financiamentos do FMI, exemplifica uma política que, na prática, tem levado a um agravamento da pobreza, deixando parcelas significativas da população a sobreviver com rendimentos inferiores a 2 USD por dia – valor que se traduz, na realidade, em uma única refeição diária.
A experiência das reformas estruturais impostas pelo FMI, que visavam uma maior abertura e liberalização dos mercados, mostra que a redução abrupta da intervenção estatal sem a implementação de mecanismos compensatórios adequados acarreta efeitos deletérios. A retirada de subsídios essenciais tem penalizado os mais vulneráveis, criando um abismo entre os que conseguem tirar partido das oportunidades do mercado e os que permanecem à margem do desenvolvimento económico. Em Angola, onde a rede de proteção social é ainda incipiente, a minimização do papel do Estado coloca em risco a coesão social e a estabilidade política, elementos indispensáveis para uma transição gradual e sustentável.
Adicionalmente, é imperativo referir que o próprio processo de evolução do Estado angolano tem sido, historicamente, marcado por uma intervenção que, embora muitas vezes criticada, permitiu amortecer os impactos das crises económicas e garantir um mínimo de bem-estar à população. A redução progressiva dessa intervenção – como sugerido pelos defensores do capitalismo liberal – pressupõe uma transição que, na prática, exige um avanço concomitante em áreas estruturais como a melhoria das infraestruturas, a diversificação da economia e o reforço institucional. Sem estas condições prévias, a diminuição do papel do Estado corre o risco de precipitar uma deterioração das condições de vida, aprofundando as disparidades sociais.
Portanto, a implementação de um capitalismo liberal, no contexto angolano, revela-se não só prematura como também potencialmente desastrosa. Num país onde a base da educação ainda necessita de investimentos profundos, onde a economia é excessivamente dependente de recursos voláteis e onde as políticas de austeridade têm contribuído para a exclusão dos mais vulneráveis, a proteção estatal deve ser intensificada e não reduzida. A aposta numa abordagem que combine uma intervenção estatal estratégica com políticas de desenvolvimento inclusivas e um fortalecimento do capital humano parece, neste contexto, a única via para uma evolução sustentável e equitativa.
Em suma, a defesa de um capitalismo liberal em Angola ignora os desafios estruturais que o país enfrenta – desde os índices de literacia aquém do necessário até à fragilidade de uma economia dependente de recursos naturais e sujeita a choques externos. O modelo angolano exige, antes de qualquer redução na intervenção estatal, uma consolidação dos mecanismos de proteção social e uma estratégia de desenvolvimento que priorize a inclusão e a redução das desigualdades. Assim, uma mudança abrupta para um capitalismo liberal, sem as condições estruturais indispensáveis, poderá agravar as disparidades e comprometer o progresso social e económico que Angola, de forma urgente, necessita.
