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Análise

A Assembleia Nacional quer fiscalizar, mas com que instrumentos?

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O apelo do Presidente da Assembleia Nacional à clarificação do papel fiscalizador do Parlamento no horizonte de 2026 constitui um momento oportuno para aprofundar a reflexão sobre a arquitectura do sistema de controlo do Estado em Angola e, em particular, sobre a forma como a fiscalização parlamentar se articula com os mecanismos de controlo interno e externo.

Num Estado Democrático de Direito, a fiscalização não é um acto isolado, mas um processo contínuo e articulado, no qual diferentes instituições desempenham funções complementares. Como sublinha Montesquieu, o equilíbrio do poder depende de uma adequada disposição institucional que impeça abusos (De l’Esprit des Lois, 1748). É neste quadro que se inscrevem o Parlamento, o Tribunal de Contas, a Inspecção-Geral da Administração do Estado (IGAE) e as inspecções sectoriais.

1. A arquitectura integrada do controlo público

A literatura contemporânea sobre accountability enfatiza que sistemas eficazes de controlo público assentam na cooperação funcional entre múltiplos actores institucionais. Para Mark Bovens (2007), a responsabilização democrática resulta da interacção entre controlo administrativo, jurídico e político, sendo cada um insuficiente quando actua de forma isolada.

Em termos práticos, o sistema de controlo do Estado organiza-se em três níveis interdependentes:

1. Controlo interno administrativo, assegurado pela IGAE e pelas inspecções sectoriais dos diferentes ministérios;

2. Controlo externo técnico e jurisdicional, exercido pelo Tribunal de Contas;

3. Controlo político-parlamentar, realizado pela Assembleia Nacional.

A eficácia da fiscalização parlamentar depende, em larga medida, da qualidade da informação produzida pelos órgãos de controlo interno, o que torna a IGAE e as inspecções sectoriais actores estratégicos no ecossistema da governação.

2. O papel da IGAE na fiscalização do Estado

A Inspecção-Geral da Administração do Estado desempenha um papel central no controlo interno transversal da Administração Pública, actuando na verificação da legalidade, regularidade, eficiência e ética da gestão pública. A sua função é preventiva, correctiva e pedagógica, contribuindo para a melhoria contínua do desempenho administrativo.

Segundo Hood et al. (1999), os sistemas modernos de controlo interno não existem apenas para sancionar, mas para produzir informação fiável que sustente decisões políticas e institucionais informadas. Neste sentido, os relatórios da IGAE constituem uma base técnica essencial para que o Parlamento exerça uma fiscalização substantiva e não meramente retórica.

Ao identificar falhas sistémicas, riscos de má gestão ou práticas administrativas desviantes, a IGAE fornece ao Parlamento elementos objectivos que permitem:

questionar políticas públicas;

exigir correcções ao Executivo;

propor alterações legislativas;

reforçar a transparência perante os cidadãos.

3. As inspecções sectoriais como fonte especializada de informação

Paralelamente à IGAE, as inspecções sectoriais desempenham um papel fundamental no controlo interno especializado. Inseridas nos respectivos ministérios, estas estruturas possuem conhecimento técnico aprofundado das políticas e programas sob sua responsabilidade.

De acordo com Pollitt e Bouckaert (2017), a especialização técnica é um factor crítico para a eficácia do controlo administrativo, sobretudo em sectores complexos como saúde, educação, energia, transportes ou obras públicas. As inspecções sectoriais produzem relatórios detalhados sobre a execução das políticas, o cumprimento das normas e a eficiência operacional.

Quando devidamente sistematizada e disponibilizada, esta informação facilita significativamente a fiscalização parlamentar, permitindo que as comissões especializadas da Assembleia Nacional acompanhem a implementação das políticas públicas com maior rigor e profundidade.

4. A fiscalização parlamentar como instância de síntese política

A Assembleia Nacional não realiza auditorias nem inspecções administrativas. O seu papel é outro: transformar informação técnica em responsabilização política. Como defende Arend Lijphart (2012), o Parlamento actua como uma instância de síntese, onde dados técnicos, relatórios de controlo e avaliações administrativas são debatidos à luz do interesse público e das escolhas políticas.

Neste sentido, a fiscalização parlamentar torna-se mais eficaz quando:

os relatórios da IGAE e das inspecções sectoriais são regularmente remetidos à Assembleia Nacional;

as comissões parlamentares dispõem de capacidade técnica para os analisar;

existe articulação institucional entre o Parlamento e os órgãos de controlo interno e externo.

Esta articulação não compromete a independência das instituições, mas reforça a coerência do sistema de controlo democrático.

5. Experiência comparada: boas práticas internacionais

A prática internacional confirma a importância do controlo interno como suporte à fiscalização parlamentar:

Portugal: a Inspecção-Geral de Finanças e as inspecções sectoriais fornecem informação técnica que sustenta o escrutínio parlamentar, em articulação com o Tribunal de Contas.

França: as inspections générales ministeriais desempenham um papel crucial na produção de relatórios que alimentam o controlo parlamentar.

Reino Unido: os departamentos governamentais possuem unidades internas de auditoria cujos relatórios complementam o trabalho do National Audit Office e do Parlamento.

África do Sul: os mecanismos de controlo interno e o Auditor-General fornecem dados essenciais para a fiscalização parlamentar, sobretudo no acompanhamento da execução orçamental.

Em todos estes casos, a fiscalização parlamentar é tanto mais eficaz quanto melhor for a qualidade do controlo interno administrativo.

6. Desafios e oportunidades para Angola em 2026

No contexto angolano, o reforço do papel fiscalizador da Assembleia Nacional passa, inevitavelmente, pela valorização institucional da IGAE e das inspecções sectoriais, garantindo:

autonomia funcional e técnica;

acesso adequado a recursos humanos qualificados;

canais formais de comunicação com o Parlamento;

transparência na divulgação dos relatórios de inspecção.

Como observa Diamond (2015), a consolidação democrática exige que os mecanismos de controlo funcionem como uma rede e não como ilhas institucionais.

Finalmente, é importante referir que a fiscalização parlamentar não se exerce no vazio. Ela depende de um sistema robusto de controlo interno e externo, no qual a IGAE e as inspecções sectoriais desempenham um papel estruturante. Ao produzir informação técnica qualificada, estas instituições facilitam, qualificam e aprofundam a fiscalização política da Assembleia Nacional, contribuindo para uma governação mais transparente, responsável e orientada para o interesse público.

Clarificar o papel fiscalizador do Parlamento em 2026 significa, portanto, reforçar toda a arquitectura do controlo do Estado, consolidando a complementaridade entre inspecção administrativa, auditoria externa e escrutínio político democrático.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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