Análise
Do conflito à convivência: o caso da represa do Mulovei e os desafios da governação comunitária no Namibe

A província do Namibe, no Sul de Angola, tem sido palco de recorrentes conflitos intercomunitários, sobretudo entre os grupos Kuvale, Nhaneka, Muhumbi e Mucubais. Estes conflitos, embora localizados, expõem fragilidades estruturais da governação angolana: a incapacidade do Estado em antecipar disputas pela posse e uso da terra, o acesso desigual à água e a ausência de políticas públicas consistentes que integrem o saber tradicional com a gestão moderna.
O caso da Represa do Mulovei, no município das Cacimbas, ilustra essa realidade. Disputada há anos pelas comunidades vizinhas, a lagoa tornou-se o epicentro de tensões que já custaram vidas humanas, feridos, deslocamentos forçados e destruição de bens. A paz alcançada recentemente, através de um encontro promovido pelo Governo Provincial do Namibe, é um passo importante, mas não suficiente. É preciso transformá-la em política pública duradoura.
1. A natureza estrutural do conflito
1.1 Água como bem estratégico e escasso
A água é o bem mais estratégico do século XXI e, nas regiões semiáridas como o Namibe, torna-se um elemento de sobrevivência colectiva. Elinor Ostrom (1990) demonstrou que os bens comuns — como a água — só podem ser preservados se geridos colectivamente, através de regras partilhadas. No caso do Mulovei, a ausência de mecanismos formais de co-gestão entre as comunidades criou um vazio que foi preenchido por violência.
1.2 A pastorícia e a identidade cultural
A pastorícia não é apenas uma prática económica, mas parte da identidade cultural dos Kuvale, Nhaneka e Mucubais. Segundo Fernandes (2018), em contextos africanos, o gado representa não apenas riqueza, mas também prestígio social, dote matrimonial e segurança alimentar. Quando a sobrevivência de uma comunidade depende do acesso a uma lagoa, a disputa deixa de ser económica e passa a ser existencial.
1.3 A ausência do Estado
O Deputado Sampaio Mucanda sintetizou o problema ao afirmar que o Governo Provincial perdeu o controlo da situação ao depender da Polícia de Intervenção Rápida (PIR). Esta estratégia, baseada na repressão, confirma a tese de Uribe de Hincapié (2004), segundo a qual o uso da força militar em contextos comunitários tende a exacerbar conflitos em vez de os resolver.
2. A resposta do Governo Provincial do Namibe
O encontro realizado no dia 18 de Agosto de 2025, na Bibala, marcou um momento de viragem. Orientado pelo Governador em exercício, Abel Kapitango, e com participação por videoconferência do Governador Archer Mangueira, o encontro reuniu administradores municipais, autoridades tradicionais, órgãos de segurança e sociedade civil.
As principais deliberações incluíram:
Manutenção da represa como bem comum de todas as comunidades.
Desarmamento de civis, articulado com líderes comunitários.
Criação de uma comissão multissectorial com sobas e representantes comunitários.
Reabilitação de represas já identificadas e construção de novas fontes de água.
Apoio às famílias deslocadas e às vítimas mortais do conflito.
Aproximação da justiça (tribunais e Ministério Público) às zonas de conflito, com foco em litígios de terra e roubo de gado.
O aperto de mãos entre as lideranças rivais simbolizou o compromisso de cessar hostilidades. Este gesto, embora simbólico, representa uma mudança de narrativa: de inimigos a parceiros na gestão de um bem comum.
3. Críticas e limitações
Apesar dos progressos, persistem críticas relevantes:
Solução emergencial e não estrutural: como defende Boaventura de Sousa Santos (2002), a paz sustentável exige diálogo contínuo e valorização dos sistemas tradicionais, e não apenas encontros pontuais.
Ausência de políticas públicas consistentes: o conflito expõe a falta de um plano de longo prazo para gestão de recursos hídricos e ordenamento fundiário.
Militarização excessiva: a dependência da PIR fragiliza a confiança das comunidades no Estado.
Falta de literacia jurídica: grande parte da população desconhece o enquadramento legal relativo à terra, ao gado e aos crimes associados.
4. Lições internacionais aplicáveis ao Namibe
4.1 Níger – corredores de mobilidade
No Níger, o governo criou corredores específicos para a circulação do gado, reduzindo conflitos entre pastores e agricultores. Segundo Turner (2011), esta estratégia diminuiu confrontos e fortaleceu a economia rural.
4.2 Botswana – política de represas comunitárias
O Botswana investiu em infra-estruturas hídricas comunitárias, provando que a água pode ser um factor de coesão e não de divisão.
4.3 Moçambique – conselhos interétnicos
Em Nampula, foram criados conselhos interétnicos comunitários, integrando sobas e líderes locais. Meneses (2015) mostrou que tais conselhos ajudaram a reduzir reincidências de violência.
4.4 Ruanda – reconciliação comunitária
O modelo dos gacaca courts, no pós-genocídio ruandês, mostra que a reconciliação só é possível quando as comunidades participam activamente da justiça e da reconstrução social.
5. Caminhos para uma paz sustentável no Namibe
1. Gestão comunitária da água – Criação de um estatuto de co-gestão da Represa do Mulovei, com regras escritas e reconhecidas pelo Estado e pelos sobas.
2. Ordenamento fundiário – Definir rotas de pastoreio seguras e garantir direitos de uso da terra, evitando sobreposição de interesses.
3. Educação cívica e jurídica – Introduzir programas de literacia legal para as comunidades rurais.
4. Justiça de proximidade – Instalar tribunais itinerantes nas zonas de maior tensão.
5. Desenvolvimento inclusivo – Investir em escolas, saúde e agricultura de pequena escala para reduzir a dependência exclusiva do gado.
6. Segurança comunitária preventiva – Criar grupos de segurança locais formados e supervisionados pelo Estado, mas liderados pelas próprias comunidades.
Finalmente, é importante referir que o acordo alcançado no Mulovei não deve ser visto como fim de um conflito, mas como ponto de partida para um novo paradigma de governação comunitária. A paz exige mais que discursos políticos: precisa de infra-estruturas hídricas, justiça acessível, participação comunitária e políticas públicas de longo prazo.
Como lembra Amartya Sen (1999), o desenvolvimento é inseparável da liberdade de participação. O futuro do Namibe depende da capacidade de transformar o conflito em oportunidade: menos força policial, mais diálogo; menos improviso, mais planeamento; menos divisão, mais solidariedade.
Se o Governo Provincial do Namibe conseguir aprender com as experiências do Níger, Botswana, Moçambique e Ruanda, e aplicar as lições de Ostrom, Lederach, Sen e Boaventura de Sousa Santos, poderá transformar o Mulovei de lagoa da discórdia em símbolo da convivência pacífica.
Que a razão da força ceda lugar à força da razão.