Análise
Segurança Pública em Angola: carreiras de risco ou carreiras de esquecimento?
A segurança pública constitui um dos pilares fundamentais para a estabilidade política, a coesão social e o desenvolvimento económico de qualquer Estado. Os profissionais que nela actuam — militares, agentes policiais, bombeiros, investigadores criminais, agentes penitenciários e de migração — desempenham funções de elevado risco, enfrentando diariamente situações que colocam em causa a sua integridade física, psicológica e até a vida. Por isso, a discussão em torno do regime de carreiras de risco é um tema central nas agendas de governação contemporânea.
Segundo Bayley (1990), “a polícia é a instituição visível que traduz a presença do Estado no quotidiano dos cidadãos”, e essa presença implica a assunção de riscos que outras categorias profissionais não enfrentam. Essa realidade impõe que o regime de carreiras destes profissionais seja diferenciado, reconhecendo a sua especificidade.
1. Experiências Internacionais de Carreiras de Risco
Nos países da Europa, as carreiras de risco são legalmente reconhecidas. Em Portugal, a Lei n.º 53/2007 estabelece o estatuto dos militares da GNR e dos agentes da PSP, reconhecendo-lhes regime especial em termos de aposentação, progressão e protecção social. Em Espanha, a Guardia Civil e o Cuerpo Nacional de Policía também dispõem de carreiras de risco, com benefícios compensatórios pela elevada exposição a situações de perigo.
Nos Estados Unidos, segundo Reaves (2015), os public safety officers possuem regimes de protecção reforçada, incluindo seguros de vida, acesso a pensões especiais e compensações adicionais em caso de incapacidade. Esse enquadramento visa reconhecer o impacto físico e psicológico da actividade.
Na África Austral, a África do Sul oferece um exemplo emblemático. O South African Police Service Act (1995) institui um estatuto de carreira que prevê condições especiais de reforma antecipada e benefícios adicionais para quem serve em áreas de maior risco, como as unidades de combate ao crime organizado, migração e investigação criminal.
2. Angola e o Desafio de um Estatuto Moderno
Em Angola, as forças de segurança — Polícia Nacional, Serviço de Investigação Criminal (SIC), Serviço Penitenciário, Corpo de Bombeiros e Serviços de Migração e Estrangeiros (SME) — possuem carreiras próprias, mas ainda carecem de um estatuto plenamente estruturado como carreiras de risco, nos moldes internacionais. O Estatuto Orgânico da Polícia Nacional prevê regras de ingresso, progressão e promoções, mas não explicita, de forma robusta, as compensações devidas pela natureza altamente perigosa da função.
Os profissionais da investigação criminal são um caso paradigmático. O SIC lida diariamente com crimes de alta complexidade — homicídios, tráfico de drogas, crimes cibernéticos, corrupção, branqueamento de capitais e criminalidade organizada — actividades que expõem os investigadores a ameaças directas contra a sua vida e a de suas famílias. Como sublinha Costa (2018), “o combate ao crime organizado exige não apenas capacidade técnica, mas também garantias legais e materiais para proteger os investigadores do risco iminente que enfrentam”.
Já os efectivos do Serviço de Migração e Estrangeiros (SME) actuam na linha da frente contra crimes transnacionais como tráfico de seres humanos, contrabando de mercadorias, imigração ilegal e terrorismo internacional. Esses riscos são agravados pela pressão das redes criminosas transfronteiriças, que muitas vezes tentam corromper ou intimidar os agentes. Como defende Andreas (2003), “a segurança das fronteiras deixou de ser apenas um acto administrativo; é hoje uma frente crítica no combate à criminalidade globalizada”.
Também os serviços prisionais enfrentam perigos constantes, uma vez que a gestão da população carcerária expõe os agentes a confrontos, motins, tráfico ilícito dentro das cadeias e a contactos permanentes com redes criminosas organizadas.
Neste sentido, tanto o SIC, o SME como os serviços prisionais devem ser integrados plenamente no regime de carreiras de risco, sob pena de fragilizar o sistema de segurança e justiça.
3. Carreiras de Investigação Criminal e de Migração: uma Urgência
A experiência internacional mostra que tanto os investigadores criminais como os agentes de migração devem ser reconhecidos dentro das carreiras de risco.
No Brasil, a Lei Complementar n.º 51/1985 prevê regime especial de aposentadoria para policiais civis e federais, incluindo investigadores criminais e agentes da Polícia Federal que actuam em fronteiras.
Nos Estados Unidos, o Department of Homeland Security (DHS) atribui estatuto de carreira de risco a agentes do Border Patrol e do Immigration and Customs Enforcement (ICE), garantindo benefícios reforçados.
Em Angola, incluir o SIC e o SME num regime claro de carreira de risco significaria:
Reconhecer a especificidade da função, distinta da actividade policial geral;
Garantir protecção laboral reforçada, incluindo seguros de vida e indemnizações;
Estabelecer condições de reforma antecipada, em função do desgaste precoce;
Oferecer formação contínua, meios tecnológicos e mecanismos de segurança familiar.
4. Para uma Nova Agenda de Segurança Pública em Angola
A discussão sobre as carreiras de risco não pode limitar-se ao aumento salarial ou à reforma antecipada. Como defendem Bayley & Shearing (2001), a governação da segurança pública deve ser vista como parte integrante da construção da cidadania. Isto significa que valorizar os profissionais é valorizar a segurança colectiva.
Um regime moderno de carreiras de risco em Angola deveria contemplar:
1. Estatuto único de carreiras de risco para Polícia Nacional, SIC, SME, Bombeiros e Serviços Penitenciários;
2. Reforma diferenciada para quem exerce funções de maior risco, sobretudo em investigação criminal, operações especiais e controlo migratório;
3. Benefícios sociais extensivos às famílias, reconhecendo que o risco não se restringe ao agente, mas repercute-se no núcleo familiar;
4. Formação contínua, protecção psicológica e tecnológica, prevenindo os efeitos traumáticos e garantindo maior eficiência;
5. Valorização simbólica e material, garantindo que os efectivos sintam reconhecimento por parte do Estado.
A construção de um regime de carreiras de risco para a segurança pública em Angola é uma necessidade premente. Num país em transição para a consolidação do Estado democrático de direito, fortalecer o estatuto destes profissionais é não apenas uma questão de justiça laboral, mas também de política de segurança nacional.
Como bem afirmou Huntington (1996), “a segurança é a primeira função do Estado, sem a qual todas as outras se tornam inviáveis”. Reconhecer e valorizar os profissionais da segurança pública — incluindo os da investigação criminal, do SME e dos serviços prisionais — significa garantir o pilar essencial sobre o qual se ergue qualquer projecto de nação.
