Análise
Reforma administrativa ou cosmética burocrática? O paradoxo das mudanças que não mudam
1. Introdução: o dilema da implementação em Angola
Angola tem desenvolvido políticas públicas ambiciosas em quase todos os sectores, como educação, saúde, habitação, agricultura e energia. Contudo, a distância entre o planeamento e a execução efectiva permanece profunda. Este fosso deve-se, em grande medida, à permanência de um modelo burocrático e centralizado, típico da administração pública tradicional, que não dialoga com as realidades locais nem reconhece a importância das redes de colaboração.
Segundo Max Weber (1922), a burocracia foi concebida como um sistema racional-legal, voltado para a previsibilidade e a obediência hierárquica. No entanto, como assinala Christopher Hood (1991), a Nova Gestão Pública (NGP) emergiu nos anos 1980 para substituir a rigidez burocrática por práticas de eficiência e gestão por resultados. Mais tarde, Jan Kooiman (2003) e B. Guy Peters (2012) introduziram a noção de Nova Governação Pública (NGP2), que privilegia a colaboração, as redes e a adaptação contextual.
É nesta perspectiva que Angola deve reposicionar-se: migrar de uma administração hierárquica para uma governação relacional e colaborativa, onde a implementação das políticas públicas resulta da interacção entre o Estado, o mercado e a sociedade civil.
2. Da natureza unitária à governação pluralista
Historicamente, o Estado angolano tem-se comportado como um actor unitário e centralizado, definindo políticas a partir de Luanda e impondo-as às províncias. Este modelo, embora funcional em contextos de reconstrução nacional, já não responde aos desafios da governação contemporânea.
Rhodes (1997) defende que o Estado moderno deixou de ser soberano absoluto e tornou-se um coordenador de redes. Em Angola, isso significa reconhecer que a execução de políticas públicas requer a participação de múltiplos actores, incluindo organizações não-governamentais, igrejas, autoridades tradicionais, universidades, empresas e comunidades locais.
Um exemplo concreto é o Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM). Em várias províncias, as obras foram mal executadas ou ficaram paralisadas porque o Governo central não dialogou suficientemente com os actores locais. Uma governação pluralista exigiria que o PIIM fosse desenhado e monitorizado por redes interinstitucionais, nas quais os governos locais, as organizações comunitárias e o sector privado pudessem assumir corresponsabilidade pela execução.
3. Do foco no sistema político ao foco no ambiente local
A lógica centralizadora faz com que políticas concebidas em gabinete ignorem as especificidades territoriais. Segundo Osborne e Gaebler (1992), a administração pública moderna deve governar mais e administrar menos, o que implica dotar os governos locais de autonomia e flexibilidade para adaptar as políticas ao contexto.
Em Angola, o Programa de Reordenamento do Comércio Ambulante (zunga) é um exemplo de política desenhada sem suficiente sensibilidade local. Tentou-se retirar os vendedores das ruas sem alternativas adequadas, gerando resistência social. Uma abordagem inspirada na Nova Governação Pública teria promovido o diálogo com as cooperativas de vendedores, criando mercados municipais participativos e soluções ajustadas à realidade socioeconómica.
Como observam Denhardt e Denhardt (2000), a gestão pública deve centrar-se não apenas na eficiência, mas também no serviço público como valor democrático, ou seja, escutar, envolver e corresponder às necessidades das pessoas.
4. Da hierarquia e contratos clássicos às redes e contratos relacionais
A administração tradicional baseia-se na hierarquia, e a Nova Gestão Pública introduziu os contratos e a lógica de mercado. Contudo, segundo Bouckaert e Pollitt (2011), a mera contratualização das relações administrativas não garante qualidade nem legitimidade.
Em Angola, é frequente observar concursos públicos baseados apenas no preço mais baixo, sem avaliar a competência técnica ou o histórico do contratante. O resultado é o que todos conhecem: obras interrompidas, pontes que ruem e hospitais inacabados.
O desafio actual é construir redes e contratos relacionais, nos quais prevaleçam a confiança, a partilha de riscos e a aprendizagem mútua. Como argumenta Koppenjan (2012), as redes de políticas públicas só funcionam quando há confiança institucional e mecanismos de negociação contínua. Em vez de contratos unilaterais, o Estado angolano deveria apostar em parcerias público-comunitárias e contratos de desempenho colaborativo, focados na resolução de problemas e na sustentabilidade das acções.
5. Da gestão de recursos à negociação de valores
Na tradição weberiana, o Estado mede o sucesso em termos de regras e conformidade. A Nova Gestão Pública introduziu métricas de eficiência. Já a Nova Governação Pública acrescenta uma terceira dimensão: o valor público, conceito formulado por Mark Moore (1995), que defende que o verdadeiro objectivo da administração é criar valor percebido pelos cidadãos.
Em Angola, políticas como o Programa de Reassentamento das Famílias em zonas de risco falharam porque não houve negociação de valores. As comunidades deslocadas não compreenderam o sentido da mudança, nem se sentiram parte da decisão.
Para que as políticas sejam eficazes, é necessário que o Governo dialogue com os cidadãos, compreendendo os seus valores, crenças e aspirações. Assim, em vez de impor soluções, o Estado deve construir significados partilhados. Como defendem Denhardt e Denhardt (2003), o papel da governação contemporânea é servir, e não dirigir.
6. Do sistema fechado ao sistema aberto e fechado
A burocracia clássica caracteriza-se por sistemas fechados, onde as decisões são tomadas internamente, sem diálogo com o exterior. A governação moderna, porém, requer sistemas híbridos, abertos para escutar e fechados para decidir.
Em Angola, o processo de revisão do Regulamento sobre Transporte Urbano é um exemplo de uma política que poderia beneficiar desta abordagem. Se o Ministério dos Transportes tivesse aberto consultas públicas com associações de taxistas e passageiros, teria recolhido contributos que aumentariam a aceitação social das medidas.
Mas, após a fase de consulta, é fundamental que o Estado feche o sistema, tomando decisões firmes e garantindo a execução, evitando a paralisia que resulta da indefinição. Kooiman (2003) chama a este equilíbrio o paradoxo da governação moderna: ser participativo sem perder autoridade.
7. Conclusão: de executor a facilitador
A transição para a Nova Governação Pública não é apenas técnica, é cultural. Angola precisa de um Estado que coordene em vez de controlar, que negocie em vez de impor e que partilhe em vez de centralizar.
Como resume Rhodes (2012), a governação contemporânea é o processo pelo qual o poder e a autoridade são exercidos através de redes interdependentes. Essa visão obriga o Estado angolano a deixar de ser um executor hierárquico para se tornar um facilitador colaborativo.
Ao fazê-lo, Angola deixará de ter políticas que começam bem e terminam no papel e passará a ter políticas que transformam vidas, porque foram desenhadas e executadas com e para o povo.
