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Análise

Quem ganha com o caos da greve dos taxistas? A Certidão da Polícia não basta!

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Os Decretos Presidenciais n.º 150/25 e n.º 151/25, publicados no Diário da República I Série, n.º 145, de 4 de Agosto de 2025, estabelecem um conjunto de medidas imediatas de apoio às empresas afectadas pelos actos de vandalismo registados entre 28 e 30 de Julho. Trata-se de uma resposta rápida e institucionalmente correcta por parte do Executivo, visando mitigar os impactos económicos de um fenómeno de instabilidade que feriu gravemente a confiança empresarial e a actividade produtiva.

Contudo, apesar da boa intenção e da robustez formal dos diplomas, a sua operacionalização revela uma fragilidade estrutural que ameaça comprometer a eficácia e a integridade das próprias medidas: a exigência de uma certidão da Polícia Nacional de Angola como prova dos danos sofridos pelas empresas. Esta imposição, embora compreensível num contexto de emergência, levanta sérias dúvidas quanto à sua adequação técnica e funcional.

1. Uma função técnica atribuída a uma entidade de segurança

A Polícia Nacional é, por natureza e missão, uma entidade de segurança pública e manutenção da ordem. O seu papel no processo de verificação dos acontecimentos é legítimo e indispensável, sobretudo para atestar a ocorrência de actos criminosos. No entanto, atribuir-lhe a responsabilidade exclusiva pela certificação dos prejuízos económicos e patrimoniais de empresas, sem apoio técnico complementar, é um erro de concepção que pode abrir espaço para distorções, injustiças e fraudes.

Segundo Peter Drucker (1999), considerado o pai da gestão moderna, “o que pode ser medido, pode ser melhorado”. Para medir danos empresariais com rigor, é necessária uma metodologia especializada, envolvendo avaliação de activos, análise contabilística e estudo do impacto financeiro directo e indirecto. São competências que fogem claramente à missão institucional e à formação da maioria dos efectivos da Polícia Nacional, como bem alertam Ferreira & Pina (2021) ao afirmarem que “a boa governação pública exige a atribuição de funções específicas a instituições competentes, sob risco de se comprometer a qualidade da política pública”.

Além disso, importa recordar que a maior parte das esquadras da polícia em Angola carece de equipamentos tecnológicos, quadros qualificados e protocolos técnicos para realizar peritagens económicas. Isso pode conduzir a avaliações superficiais ou mesmo arbitrárias, sendo um convite indirecto a práticas oportunistas de aproveitamento indevido dos recursos públicos.

2. O papel das instituições técnicas: ASAN e OCPA como solução

Ao invés de restringir a certificação dos danos à Polícia Nacional, devia-se incluir entidades com competência reconhecida na matéria, como a Associação de Seguradoras de Angola (ASAN) e a Ordem dos Contabilistas e Peritos de Angola (OCPA). Estas instituições não só possuem técnicos formados em avaliação de sinistros, análise financeira e auditoria, como também estão sujeitas a normas éticas e deontológicas que reforçam a fiabilidade dos seus pareceres.

Como refere Michael Power (2007), na sua obra The Risk Management of Everything, “a confiança nas instituições não se dá apenas pela sua autoridade formal, mas pela sua capacidade técnica de auditar, avaliar e comunicar riscos com legitimidade”. Ora, incluir a ASAN e a OCPA no processo de validação dos danos empresariais seria um passo na direcção da transparência, eficiência e prestação de contas que o Estado tanto proclama como pilares da sua governação.

De igual modo, Balandier (2003) alerta para o perigo de se naturalizarem estruturas improvisadas no seio do Estado, sobretudo em contextos africanos, onde “a função de controlo é frequentemente confundida com o exercício arbitrário do poder”.

3. Riscos de ineficiência e corrupção

Ao não se dotar o processo de avaliação dos prejuízos com rigor técnico, os decretos abrem espaço a dois riscos simultâneos: a exclusão de empresas verdadeiramente afectadas que não consigam obter a tal certidão policial e a inclusão de empresas oportunistas que, por via de esquemas informais ou ligações políticas, obtenham a certificação sem terem sofrido danos reais.

É o próprio Banco Mundial (2021) que adverte: “medidas de apoio económico em contextos frágeis devem ser acompanhadas de mecanismos de verificação independentes, sob pena de comprometer o seu objectivo de equidade e eficácia.”

4. Proposta de melhoria normativa

É urgente a revisão dos decretos no que tange à certificação dos danos. Propõe-se:

1. Que a certidão da Polícia Nacional continue a ser exigida, mas apenas como prova da ocorrência do acto de vandalismo;
2. Que a avaliação dos prejuízos materiais e financeiros seja atribuída à ASAN, à OCPA ou a peritos independentes certificados;
3. Que se crie uma comissão técnica interinstitucional para acompanhar e validar os processos, composta por representantes da Polícia, da banca, das ordens profissionais e do Ministério das Finanças, Comércio e Indústria e do Planeamento com a coordenação do Ministro de Estado da Coordenação Económica;
4. Que os relatórios de avaliação sejam arquivados digitalmente numa base de dados acessível a órgãos de controlo como o Tribunal de Contas e a IGAE.

5. Conclusão: boa intenção exige boa execução

A resposta do Executivo aos actos de vandalismo foi célere e necessária. No entanto, como sublinha Amartya Sen (1999), Prémio Nobel da Economia, “uma boa política é aquela que produz resultados justos, sustentáveis e verificáveis”. E para que isso aconteça, é necessário que a avaliação dos danos seja feita por quem tem competência para tal. Deixar essa tarefa exclusivamente nas mãos da Polícia é confiar a uma chave de fendas o trabalho de um bisturi.

Num país onde se quer combater a corrupção, promover a confiança nas instituições e fortalecer o tecido económico, não há espaço para improvisos nem para avaliações duvidosas. Os decretos presidenciais foram um bom começo, mas, como bem ensina Boaventura de Sousa Santos (2010), “não basta o Estado estar presente; é preciso que esteja presente com qualidade e com justiça”.

Chegou a hora de o Estado angolano reforçar o seu compromisso com a especialização técnica e com a boa governação. Porque reconstruir Angola é mais do que levantar muros: é construir instituições sérias, eficientes e à altura dos desafios do nosso tempo.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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