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Opinião

Poder absoluto? Ministros em Angola demitem funcionários públicos sem julgamento

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1. Introdução

A estabilidade no serviço público é um dos pilares essenciais para garantir a continuidade, eficiência e imparcialidade da administração estatal. Segundo Max Weber (1946), um dos princípios fundamentais da burocracia moderna é a impessoalidade, ou seja, a separação entre a administração pública e os interesses políticos dos governantes de ocasião. Essa separação só é possível quando os funcionários públicos possuem garantias contra demissões arbitrárias, sendo exonerados apenas por critérios objectivos e através de um devido processo legal.

Em qualquer Estado de Direito, o funcionário público não é apenas um executor de ordens administrativas, mas o garante da legitimidade burocrática do Estado. Ele assegura a continuidade das políticas públicas e a aplicação das leis, independentemente das mudanças políticas. Dessa forma, a estabilidade funcional protege não apenas o servidor, mas também a própria administração pública para impedir que decisões administrativas sejam influenciadas por interesses político-partidários ou pessoais.

Em Angola, no entanto, a legislação vigente permite que ministros tenham o poder discricionário de demitir funcionários públicos, muitas vezes sem um processo disciplinar adequado e sem intervenção do poder judicial. Essa prática levanta sérias preocupações sobre a transparência, a imparcialidade e a legalidade das decisões administrativas, além de comprometer a profissionalização da administração pública. A falta de um mecanismo que garanta o contraditório e a ampla defesa não apenas fere princípios básicos do Estado de Direito, mas também expõe os servidores públicos a vulnerabilidades políticas e institucionais.

Além disso, a demissão de funcionários públicos deve respeitar limites prudenciais, uma vez que o trabalho é um direito fundamental consagrado na Constituição da República de Angola. O artigo 76.º da Constituição estabelece que todos os cidadãos têm direito ao trabalho, à justa remuneração e à segurança no emprego, o que impõe restrições ao poder do Estado de rescindir unilateralmente contratos sem fundamento legal adequado.

Diante desse cenário, este artigo propõe uma análise crítica do modelo administrativo angolano, comparando-o com experiências internacionais mais consolidadas, como as do Brasil, Portugal e França. O objectivo é destacar as fragilidades desse sistema e propor reformas que possam garantir maior profissionalismo e transparência na administração pública angolana.

2. A Importância da Estabilidade no Serviço Público

A estabilidade no serviço público tem como principal objectivo assegurar que a administração estatal funcione de forma eficiente, contínua e imparcial, independentemente das mudanças políticas. De acordo com Bresser-Pereira (1998), a profissionalização da burocracia pública é um elemento fundamental para o desenvolvimento de um Estado moderno, pois garante que os servidores sejam seleccionados por mérito e permaneçam nos cargos com base no seu desempenho, e não por influência política.

O funcionário público desempenha um papel essencial na preservação da legalidade e no fortalecimento das instituições, funcionando como um garante da continuidade administrativa e da previsibilidade das acções governamentais. Quando os servidores podem ser demitidos sem critério objectivo, toda a estrutura do Estado fica vulnerável à descontinuidade, à perseguição política e à perda de capital humano qualificado.

Nos países que adoptam modelos administrativos sólidos, como Brasil e Portugal, a demissão de funcionários públicos efectivos só pode ocorrer por dois meios principais:

1. Processo Administrativo Disciplinar (PAD) – Um procedimento formal que garante ao servidor o direito ao contraditório e à ampla defesa, conforme estabelecido por Di Pietro (2012).

2. Decisão Judicial Transitada em Julgado – Quando há condenação definitiva por crimes ou faltas graves que afectam a sua idoneidade no cargo.

Esses mecanismos são essenciais para impedir exonerações arbitrárias e assegurar que a administração pública opere com base na meritocracia e na legalidade.

3. O Modelo Administrativo Angolano e as Suas Fragilidades Estruturais

Em Angola, os ministros possuem amplos poderes para nomear e exonerar funcionários públicos, incluindo aqueles que não ocupam cargos de confiança “privativo” ou de natureza política. Essa prerrogativa, ao invés de fortalecer a administração pública, gera fragilidades institucionais que comprometem a sua eficiência e credibilidade.

3.1. O Caso das Demissões no Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola

Um exemplo recente e emblemático da fragilidade do modelo administrativo angolano foi a demissão de 25 funcionários do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos entre Novembro de 2024 e Fevereiro de 2025. Segundo um comunicado oficial, as exonerações ocorreram devido a actos de corrupção, indisciplina, emissão fraudulenta de documentos, falta de zelo, incompetência, abandono de lugar e violação de procedimentos legais.

Embora a luta contra a corrupção e a má conduta na administração pública seja fundamental para o fortalecimento das instituições, a ausência de informações sobre a instauração de processos administrativos disciplinares e a falta de envolvimento do poder judicial nesse tipo de decisão geram preocupações sobre a transparência e a legalidade dessas demissões.

A Constituição angolana e os princípios gerais do direito administrativo exigem que qualquer sanção aplicada a um funcionário público seja precedida por um processo que assegure a ampla defesa e o contraditório.

3.2. O Risco de Demissões Arbitrárias

A inexistência de um processo disciplinar formal que garanta o direito de defesa cria um ambiente de insegurança no serviço público. Ferreira Filho (2016) argumenta que a estabilidade funcional protege a administração pública contra interferências políticas e perseguições ideológicas. No modelo angolano, a ausência dessa protecção permite que servidores sejam afastados não com base em critérios técnicos, mas por interesses políticos e pessoais.

3.3. Politização da Administração Pública

A possibilidade de demitir funcionários públicos sem um critério objectivo abre espaço para a politização do serviço público. Nunes (2009) argumenta que a politização excessiva do funcionalismo enfraquece a sua eficiência e comprometimento, pois permite que cargos administrativos sejam ocupados por indivíduos sem qualificação técnica adequada, escolhidos apenas por suas conexões políticas.

4. Modelos Internacionais e Alternativas para a Reforma Administrativa em Angola

A fim de garantir maior profissionalização e independência da administração pública, Angola pode inspirar-se em modelos internacionais que asseguram maior protecção aos servidores públicos.

1. Brasil – A Constituição Federal protege a estabilidade dos servidores públicos, determinando que só podem ser demitidos por decisão judicial ou por meio de um processo administrativo disciplinar, conforme estabelecido na Lei 8.112/1990.

2. Portugal – A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas define que a demissão de servidores efectivos só pode ocorrer por condenação judicial ou por um processo administrativo disciplinar que garanta a ampla defesa.

3. França – O estatuto da função pública estabelece que os servidores efectivos só podem ser desligados por meio de um processo disciplinar estruturado ou por decisão judicial.

5. Conclusão: A Necessidade de uma Reforma Administrativa em Angola

O modelo administrativo angolano, ao conceder aos ministros o poder de demitir funcionários públicos sem um processo disciplinar adequado, representa uma fragilidade institucional significativa.

No âmbito do processo da Reforma do Estado que aponta para modernização da sua administração pública, Angola deve implementar reformas que garantam maior transparência e profissionalização, tais como:

1. Adopção de um processo administrativo disciplinar estruturado que respeita o contraditório e a ampla defesa.

2. Exigência de decisão judicial para a demissão de servidores efectivos para garantir um julgamento imparcial.

3. Criação de um órgão independente para supervisão das exonerações no serviço público.

Somente com essas mudanças será possível consolidar um Estado moderno, baseado em princípios de legalidade, moralidade e impessoalidade, fundamentais para o desenvolvimento sustentável e democrático de Angola.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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