Análise
O papel dos mercenários e das empresas militares privadas no sistema internacional: da lança ao drone

Os mercenários são tão antigos quanto a própria guerra. Desde os hoplitas gregos pagos por cidades-estado rivais, até os condottieri italianos da Renascença, a figura do guerreiro que vende a sua espada ao melhor pagador tem atravessado séculos e fronteiras. Contudo, o seu papel no sistema internacional não é apenas uma nota de rodapé da história militar, é um reflexo direto da transformação das relações de poder, da economia de guerra e da própria soberania dos Estados.
No período moderno, sobretudo após a Paz de Vestfália (1648), o Estado assumiu o monopólio legítimo da violência, como teorizou Max Weber. O exército deixou de ser um conjunto de aventureiros pagos para lutar e passou a ser uma instituição nacional, com bandeira, hierarquia e propósito político. No entanto, esse monopólio foi sendo corroído à medida que o sistema internacional se complexificou e o mercado passou a ditar também as dinâmicas da guerra.
O ponto de viragem deu-se no pós-Guerra Fria. O colapso da bipolaridade entre EUA e URSS abriu um vazio de segurança em várias regiões, principalmente em África e no Médio Oriente. Foi nesse contexto que surgiram as chamadas Private Military Companies (PMCs), empresas militares privadas, como a Executive Outcomes (sul-africana) e a Sandline International (britânica), que operaram em conflitos como os de Angola e Serra Leoa, na década de 1990. Vendiam proteção, logística, treino e, por vezes, intervenção direta, funções tradicionalmente reservadas aos exércitos nacionais.
A partir daí, o negócio da guerra tornou-se uma indústria global multibilionária. O caso da Blackwater (posteriormente Academi), no Iraque e no Afeganistão, evidenciou como os Estados passaram a terceirizar parte da sua máquina militar, não apenas por conveniência logística, mas também por razões políticas, é mais fácil negar responsabilidade quando um massacre é cometido por “contratados privados” do que por tropas oficiais. O discurso da eficiência e da especialização mascarou uma verdade inquietante: o poder de fazer guerra e matar deixou de ser monopólio do Estado.
Hoje, o cenário é ainda mais complexo. A Rússia, por exemplo, utilizava o Grupo Wagner e agora o Africa Corps como instrumento de política externa, misturando interesses estatais com ambições comerciais e geopolíticas. Na África, o grupo tem atuado como uma espécie de “braço armado” da diplomacia russa, trocando segurança por recursos naturais. É o realismo político em versão pós-moderna: o Estado mantém as mãos limpas enquanto os mercenários fazem o “trabalho sujo”.
Contudo, as empresas privadas não são apenas instrumentos de poder autoritário. Em alguns casos, como em missões de segurança marítima contra a pirataria ou em operações humanitárias de evacuação, elas preenchem lacunas que as Nações Unidas e os Estados não conseguem cobrir. O problema é a falta de um quadro jurídico internacional eficaz para regular a sua atuação. A Convenção da ONU contra o recrutamento de mercenários (1989) é obsoleta e pouco ratificada; o mercenarismo moderno é hoje muito mais empresarial e sofisticado, operando legalmente sob contratos de “segurança privada”.
Em última análise, os mercenários e as empresas militares privadas revelam um paradoxo profundo do sistema internacional contemporâneo: quanto mais globalizado e interdependente o mundo se torna, mais o Estado parece disposto a privatizar a sua própria soberania. A guerra, outrora uma prerrogativa do poder político, transformou-se num serviço subcontratado, disponível ao melhor preço.
A questão que se coloca agora é se o futuro da guerra será decidido por generais ou por gestores. O campo de batalha já não é apenas o deserto ou a selva é o mercado. E nele, quem controla a violência, controla também o poder.