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Mutualismo em Angola: transparência sonhada ou corrupção anunciada?

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As associações mutualistas são uma expressão concreta daquilo que Émile Durkheim (1893) designava por «solidariedade orgânica», isto é, formas organizadas de cooperação que respondem às necessidades colectivas de protecção. Funcionam como organizações de entreajuda, sem fins lucrativos, nas quais cada membro contribui financeiramente para que todos possam ter acesso a benefícios em momentos de maior fragilidade, seja na doença, na velhice, no desemprego ou até em despesas imprevistas, como os funerais.

1. A Tradição Internacional

Nos países europeus, a tradição mutualista tem raízes históricas profundas. Em Portugal, por exemplo, o Montepio Geral, Associação Mutualista, fundado em 1840, consolidou-se como um verdadeiro pilar de protecção social complementar. O seu sucesso assenta em dois elementos essenciais: sustentabilidade financeira e credibilidade junto dos associados (Ferreira, 2015). Já em França, a MACIF e outras mutualistas são vistas como parte integrante da economia social e solidária, cumprindo o que Laville (2010) define como «um modo alternativo de organizar a economia, baseado na reciprocidade e não apenas no lucro».

Estes exemplos revelam que o mutualismo pode ser muito mais do que um fundo solidário: pode constituir-se como um sistema paralelo de protecção social, reforçando a cidadania e a coesão social.

2. O Caso Angolano

Em Angola, as associações mutualistas estão ainda em processo de amadurecimento. É verdade que existem experiências relevantes, como a Associação Mutualista dos Trabalhadores da Sonangol (AMUTS), a Associação Mutualista dos Trabalhadores do BPC e a Associação Mutualista da Polícia Nacional. Estas organizações procuram garantir apoio social e económico aos seus membros, mas o impacto permanece limitado quando comparado com a dimensão dos desafios sociais do país.

Como refere Santos (2018), «em sociedades em desenvolvimento, a economia solidária surge como alternativa à insuficiência das políticas públicas». No caso angolano, as mutualistas podem desempenhar esse papel complementar, sobretudo porque a Segurança Social estatal enfrenta limitações de cobertura e de sustentabilidade.

3. Modelo de Governação: Democracia e Sustentabilidade

Para que uma mutualista funcione de forma eficiente e duradoura, precisa de um modelo de governação claro e transparente. Isso implica órgãos sociais robustos:

Assembleia-Geral, como órgão supremo e democrático, onde todos os associados têm voz e voto;

Direcção Executiva, responsável pela gestão operacional;

Conselho Fiscal ou de Auditoria, que assegura a fiscalização independente.

Segundo Drucker (1994), «as organizações sem fins lucrativos só sobrevivem se forem geridas como empresas, mas governadas como comunidades». Esta é a síntese exacta do desafio mutualista: combinar rigor financeiro com espírito solidário.

A sustentabilidade financeira exige orçamentos realistas, fundos de reserva e investimentos seguros dos excedentes. Sem esta disciplina, corre-se o risco de transformar as mutualistas em estruturas frágeis e vulneráveis à má gestão.

4. Transparência: o Pilar da Confiança

A transparência é, talvez, o maior desafio para as associações mutualistas em Angola. Muitas funcionam com prestação de contas limitada, comunicação deficitária e fiscalização pouco actuante. Como lembra Bobbio (1984), «a democracia só existe quando há publicidade dos actos e decisões, porque o poder escondido é sempre propenso ao abuso».

Neste sentido, é fundamental:

Publicação anual de relatórios financeiros e de actividades;

Auditorias externas independentes;

Divulgação clara dos critérios de atribuição de apoios;

Participação regular e informada dos associados nas assembleias.

Sem estes mecanismos, não há confiança. E, sem confiança, uma mutualista perde a sua essência.

5. Responsabilidade Social: para Além dos Associados

Um dos aspectos mais relevantes, e ainda pouco explorados em Angola, é a responsabilidade social das mutualistas. Para além da protecção directa aos seus membros, estas organizações podem e devem alargar o seu impacto às comunidades onde se inserem. Isto significa apoiar projectos educativos, promover campanhas de saúde pública, investir em programas de formação profissional e participar em iniciativas ambientais e culturais.

Como defende Carroll (1991), «a responsabilidade social das organizações vai para além da mera legalidade e da procura de eficiência: é também uma obrigação moral para com a sociedade». No contexto angolano, este princípio é vital, pois permite que as mutualistas sejam vistas não apenas como fundos restritos, mas como agentes activos de desenvolvimento comunitário.

6. Oportunidades para Angola

Angola enfrenta grandes desafios sociais: desemprego, insuficiência de serviços de saúde, fragilidade dos sistemas de pensões. As mutualistas podem ser uma resposta complementar e eficaz, sobretudo a nível comunitário e municipal. Podem financiar bolsas de estudo, apoiar cooperativas de consumo, dinamizar projectos de habitação social e reforçar a rede de protecção em períodos de crise.

Como escreve Sen (1999), «a liberdade de um povo está directamente ligada à sua capacidade de organizar soluções colectivas para os seus problemas». Neste prisma, as mutualistas não são apenas instrumentos de solidariedade, mas também de empoderamento social.

7. Governação e Acesso a Mercados Financeiros

Para além da sua função social, as associações mutualistas em Angola podem aspirar a um papel mais ambicioso: posicionarem-se como entidades capazes de actuar em mercados financeiros, incluindo o acesso às bolsas de valores. Para tal, é necessário elevar os padrões de governação a níveis compatíveis com exigências internacionais:

Transparência financeira plena, com demonstrações auditadas segundo normas internacionais (IFRS);

Gestão profissionalizada, capaz de equilibrar sustentabilidade com inovação;

Boa governação corporativa, baseada em princípios de independência, responsabilidade e prestação de contas.

Segundo Jensen e Meckling (1976), «a confiança dos investidores depende da redução da assimetria de informação e da criação de mecanismos que limitem o abuso de poder». No caso angolano, isso significa que mutualistas que ambicionem crescer devem adoptar padrões de “corporate governance” que lhes permitam captar investimento, emitir títulos de dívida ou até criar sociedades participadas cotadas em bolsa.

Esta evolução não elimina a sua natureza solidária, mas antes reforça a sua capacidade de gerar valor social de forma sustentável. Ao aliarem solidariedade e sofisticação financeira, as mutualistas angolanas podem abrir um caminho inédito para a economia social no país.

Finalmente, é importante referir que o futuro das associações mutualistas em Angola dependerá da sua capacidade de se reinventarem:

Tornarem-se mais democráticas e participativas;

Garantirem gestão profissional e sustentável;

Adoptarem padrões elevados de transparência e auditoria;

Se posicionarem como parceiros estratégicos do Estado na protecção social complementar;

Incorporarem a responsabilidade social como parte essencial da sua identidade;

Prepararem-se para entrar nos mercados financeiros com credibilidade e governação robusta.

Se seguirem este caminho, deixarão de ser vistas como meros fundos de emergência e passarão a ser reconhecidas como verdadeiros motores de coesão social, desenvolvimento e cidadania activa.

No fim, trata-se de dar corpo ao princípio que guiou o mutualismo desde a sua origem: «um por todos e todos por um», mas agora com a ambição de conquistar também espaço nos mercados de capitais.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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