Opinião
Gratuidade do ensino não paga casas de banho: a urgência de uma Lei de Manutenção Escolar
A educação é o coração do desenvolvimento de qualquer nação. Em Angola, o compromisso com o ensino gratuito é uma conquista do povo e um reflexo da vontade política expressa na Constituição da República. O artigo 79.º determina que o ensino primário deve ser universal, obrigatório e gratuito, reconhecendo que a escola é um direito e não um privilégio. Todavia, nas últimas décadas, tem-se confundido o direito à gratuitidade com a ideia equivocada de que os cidadãos não devem envolver-se — nem material nem moralmente — com a preservação e manutenção das escolas públicas.
Esta confusão tem sido desastrosa. As escolas públicas angolanas, especialmente nas zonas periurbanas e rurais, vivem um processo gradual de degradação estrutural. Muros partidos, casas de banho sem água, lixeiras improvisadas nos quintais das escolas, redes eléctricas deterioradas, falta de segurança e ausência de áreas verdes são fenómenos comuns que não só dificultam o processo de aprendizagem, como põem em risco a saúde e a dignidade dos próprios estudantes. Quando falamos em qualidade de ensino, não nos podemos limitar ao conteúdo curricular ou à formação dos professores — é preciso incluir o ambiente físico onde o ensino ocorre.
A Escola como um Bem Colectivo
A escola é um bem público, mas também é um bem comum. Como defende Elinor Ostrom (2009), Nobel de Economia, “os bens comuns podem ser geridos colectivamente pela própria comunidade, desde que haja regras claras, instituições locais fortes e mecanismos de fiscalização”. Essa perspectiva permite reconhecer que os pais, os encarregados de educação e a própria comunidade local têm legitimidade para participar na preservação do espaço escolar, desde que essa participação seja regulada, inclusiva e transparente.
Paulo Freire (1996) reforça esse ponto ao afirmar que “não é possível uma educação libertadora num espaço opressor”. E, de facto, como podemos falar em cidadania, inovação ou pedagogia de excelência em escolas onde os alunos não têm sequer acesso a casas de banho funcionais ou onde os professores dão aulas sob tetos a cair?
A Experiência Local Conta: Lições do Lubango
É importante reconhecer que já existem experiências positivas de comparticipação comunitária na manutenção escolar, mesmo sem uma base legal nacional que as sustente. No Município do Lubango, várias comunidades escolares demonstram, na prática, que é possível criar soluções locais para problemas estruturais. Pais que se organizam para comprar material de limpeza, igrejas que ajudam a recuperar casas de banho, pequenas contribuições mensais acordadas em assembleias escolares para garantir segurança ou pequenas reabilitações — tudo isso já acontece.
No entanto, a ausência de uma lei que regule, legitime e fiscalize estas práticas abre espaço para abusos, conflitos e desigualdades entre escolas. É necessário transformar estas boas práticas pontuais num modelo nacionalmente estruturado, garantindo uniformidade, equidade e respeito pelos princípios constitucionais.
A Participação Comunitária como Complemento e Não Substituição do Estado
O Estado continua — e deve continuar — a ser o principal responsável pela construção, reabilitação, expansão e fiscalização das infraestruturas escolares. No entanto, em países em desenvolvimento como Angola, a limitação de recursos orçamentais e a dispersão geográfica das comunidades educativas tornam o modelo centralizado insuficiente. A realidade exige um novo paradigma: a corresponsabilização social pela manutenção escolar.
A proposta aqui apresentada é a criação de uma Lei da Comparticipação Comunitária na Manutenção Escolar, que legalize e regulamente a contribuição mínima, voluntária e fiscalizada dos pais e encarregados de educação para apoiar áreas essenciais como a limpeza, segurança, jardinagem, conservação de sanitários e pequenas manutenções estruturais.
Esta lei permitiria que cada escola pública pudesse organizar, com base em critérios definidos pelo Ministério da Educação, fundos escolares comunitários geridos por Comités de Gestão Escolar, compostos por representantes da direcção da escola, pais, professores e autoridades locais. Este modelo pode ser inspirado em boas práticas internacionais, como os school management committees utilizados com sucesso em países como o Quénia, Uganda e Brasil, que comprovaram que o envolvimento comunitário fortalece o sentimento de pertença e eleva o zelo com os bens públicos.
Princípios Fundamentais da Proposta de Lei
A referida lei deveria assentar sobre os seguintes princípios:
1. Gratuitidade garantida – nenhuma criança deve ser impedida de frequentar a escola por incapacidade de pagar qualquer valor. A educação básica deve permanecer um direito inalienável.
2. Contribuições voluntárias e acessíveis – as contribuições devem ter limites máximos fixados nacionalmente e ajustadas localmente, com isenções automáticas para famílias vulneráveis.
3. Gestão transparente – prestação de contas trimestral, obrigatoriedade de assembleias públicas e publicação das receitas e despesas.
4. Participação equitativa – representação de género e equilíbrio entre professores, pais, direcção escolar e representantes da administração local.
5. Fiscalização social e institucional – auditoria interna da escola e supervisão externa por parte das direcções municipais da Educação.
Como afirma Boaventura de Sousa Santos (2002), “sem democratização da gestão escolar, a escola pública corre o risco de tornar-se um espaço burocrático, distante e ineficaz.”
Exemplos que Inspiram: Lições Regionais
Em vários países africanos, mecanismos similares têm sido adoptados com relativo sucesso. No Ruanda, por exemplo, a política de capitation grants inclui a mobilização da comunidade escolar para actividades de manutenção básica das escolas. No Brasil, a lei nº 9.394/96 estabelece os Conselhos Escolares, com poder deliberativo sobre os fundos recebidos para manutenção e pequenas melhorias. Já em Moçambique, a iniciativa de “Escola Amiga” tem fomentado parcerias entre escolas, famílias e ONGs locais para cuidar dos espaços educativos. Estes exemplos mostram que não há contradição entre ensino gratuito e envolvimento comunitário.
Educar para a Cidadania, Não Apenas para os Exames
Ao envolver os pais e a comunidade local na manutenção das escolas, estaremos também a educar os próprios alunos para valores como a responsabilidade, a transparência, a participação e o respeito pelo bem público. A cidadania activa aprende-se no exemplo: uma escola cuidada por todos educa para um país respeitado por todos.
Não se trata de uma medida punitiva, nem de uma fuga do Estado às suas obrigações, mas sim de uma visão inovadora e realista da governação escolar. Como lembra Amartya Sen (1999), Prémio Nobel de Economia, “a liberdade real das pessoas depende tanto das instituições estatais quanto da capacidade colectiva de agir em favor do bem comum.”
Conclusão: Uma Nova Cultura de Responsabilidade Partilhada
É chegada a hora de Angola adoptar uma nova cultura educativa, onde o direito à educação seja acompanhado por deveres cívicos de preservação e cuidado. Criar uma lei que regule a comparticipação dos pais e encarregados de educação não viola a Constituição, antes a complementa. Trata-se de um modelo de co-governação que não apenas melhora a qualidade da escola, mas fortalece o tecido social e aproxima o cidadão do processo educativo.
A gratuidade do ensino deve continuar a ser um valor inegociável. Mas o abandono físico das escolas públicas não pode mais ser tolerado. Se queremos uma Angola com mais futuro, devemos começar por cuidar melhor das nossas escolas — e essa responsabilidade começa hoje, com todos nós.