Análise
Governar é negociar: as fragilidades de negociação no Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola
Governar vai muito além de mandar. Governa-se, ou melhor, governa-se bem, quando se negocia, quando se escuta, quando se reconhece que o poder não é absoluto e que as instituições ganham força não com a imposição, mas com o consenso. Em contextos de divergência, como o actual, esse princípio torna-se ainda mais crucial. A recente publicação da circular pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos (Circular n.º 14/2025), que declara a greve do Sindicato dos Oficiais de Justiça de Angola (SOJA) “ilegal”, oferece um bom pretexto para reflectir sobre esta dinâmica: o direito à greve, as obrigações do Estado, o papel da negociação como instrumento de governação e os riscos de recorrer à intimidação como método de controlo.
1. A greve como direito e a negociação como dever
A greve é um direito reconhecido nas modernas democracias e não pode ser reduzida a mero acto de desobediência ou ruptura. Trata-se de manifestação legítima de um colectivo de trabalhadores que se entende não ouvido ou mal representado. A Constituição da República de Angola e diversos instrumentos internacionais garantem o direito à liberdade sindical, ao protesto e à greve como expressão de cidadania activa. Neste sentido, a intervenção estatal que penaliza automaticamente a greve elimina o espaço para a negociação, privando o exercício do poder público da sua componente mediadora e construtiva.
Este imperativo de negociação reflecte-se também na literatura académica sobre governação. Segundo R. A. W. Rhodes (1996), a governação moderna assenta na network governance, isto é, em redes, interacções e diálogo, em que o Estado não age sozinho, mas em conjugação com múltiplos actores e interesses. Em África, autores como Patrick Chabal (2009) e Adekeye Adebajo (2016) defendem que a negociação responsável dentro do governo e entre governo e sociedade civil constitui um dos pilares da boa governação.
2. Negociação ou intimidação: o dilema da autoridade
Quando o Estado opta por medidas intimidadoras, como descontos salariais, sanções disciplinares ou atribuição unilateral de falta injustificada, em vez de diálogo, aquilo que se revela é uma fragilidade estratégica. O recurso à força ou à ameaça é, muitas vezes, o sintoma de incapacidade para negociar, de falta de canais eficazes de escuta ou de ausência de cultura institucional de mediação. Em vez de fortalecer a autoridade, a coerção mina a confiança e ameaça desestabilizar o ambiente institucional.
No âmbito das relações laborais no sector público, Robert McKersie (2019) aponta que a negociação eficaz exige reconhecimento mútuo, estrutura de comunicação e processo de construção de confiança entre administração e trabalhadores. Igualmente, estudos sobre a integrative negotiation (Fisher e Ury, 1981) demonstram que, quando se privilegia apenas a distribuição, quem perde e quem ganha, em vez dos interesses mútuos, os resultados são menores e a confiança deteriora-se.
3. O contexto angolano: particularidades e desafios
Em Angola, onde o sistema institucional está ainda em fase de maturação e a cultura de negociação pública exige consolidação, este tema ganha contornos específicos. A circular em referência evidencia um episódio em que o Estado assume uma postura unilateral: a greve é declarada ilegal, e as consequências para os funcionários são claramente enunciadas, como a falta injustificada, descontos e perda de benefícios.
No entanto, essa abordagem ignora que a greve é, ao mesmo tempo, um pedido de diálogo e uma indicadora de falha nos canais de negociação. O Estado devia ver esta situação não como um ataque, mas como um sinal de alerta institucional: algo falhou na comunicação, no reconhecimento e no processo participativo.
Na governação pública, como sustenta Amartya Sen (1999) em Development as Freedom, o progresso não se mede apenas pelos indicadores económicos, mas também pela expansão das liberdades e pelo fortalecimento das instituições que permitem a participação activa dos cidadãos. Se uma greve é tratada exclusivamente como um acto ilegal, perde-se a oportunidade de a transformar num mecanismo de construção de legitimidade, diálogo e melhoria institucional.
4. O perfil do ministro: para além dos hard skills
A presente reflexão conduz inevitavelmente a uma questão central: quem governa e com que competências governa? O perfil do ministro, num Estado democrático e moderno, não pode ser analisado apenas à luz dos hard skills, como diplomas, cargos anteriores e experiência técnica. É imperioso considerar os soft skills: empatia, escuta activa, capacidade de negociação, liderança ética e emocional, e visão de serviço público.
Como defende Daniel Goleman (1998), a inteligência emocional é um factor determinante no desempenho dos líderes, pois quem não sabe gerir emoções dificilmente consegue gerir pessoas e instituições. Por sua vez, John Kotter (2012) lembra que o verdadeiro gestor público é aquele que transforma autoridade em influência e comando em cooperação. Portanto, o ministro eficaz é aquele que conjuga competência técnica com sensibilidade política, visão estratégica e maturidade emocional para compreender que governar é um exercício de construção colectiva.
Angola precisa de ministros negociadores, dialogantes e empáticos, que compreendam que o poder político não é posse, mas responsabilidade. Governar é, antes de tudo, um acto de escuta e de humildade institucional.
5. O papel da liderança e da cultura de negociação
A qualidade do governo é reflexo da qualidade da liderança. O líder público não governa apenas com decretos; governa, sobretudo, quando sabe dialogar, inspirar, construir consensos e transformar conflitos em oportunidades de crescimento. Como já referia James MacGregor Burns (1978), a liderança transformacional não impõe, envolve; não ordena, articula.
Neste sentido, governar é negociar, negociar com os que concordam, mas sobretudo com os que discordam. É pela via da negociação que o Estado demonstra maturidade política e garante estabilidade, confiança e resiliência institucional. Quando o poder recorre imediatamente à sanção, revela-se uma deficiência de escuta e de estratégia. A governação não é mais séria e eficaz por ser dura; ao contrário, torna-se legítima e duradoura pela sua capacidade de integrar, mediar e conduzir o diálogo. Nesse quadro, a autoridade tem mais força em quem a aceita do que em quem a teme.
6. Um modelo de abordagem recomendado
Para um Estado moderno, democrático e eficaz, como o que aspiramos para Angola, recomendam-se três pilares principais no tratamento de reivindicações laborais:
1. Escuta activa e pré-negociação: Instituir canais reais de diálogo antes da crise. A negociação não deve começar com a greve, mas antes dela. O Estado deve procurar entender as causas profundas, disponibilizar mediadores e abrir fóruns de escuta.
2. Negociação estruturada e construtiva: Partir não da imposição, mas da construção conjunta de soluções. Como demonstra a investigação sobre a integrative negotiation, quanto maior a partilha de interesses, maior a probabilidade de resultados positivos e sustentáveis.
3. Gestão democrática dos desacordos: Reconhecer que a divergência é parte natural da democracia e que o papel do Estado não é eliminar o conflito, mas geri-lo de modo transparente, inclusivo e legítimo. Em vez de sanções automáticas, deve-se apostar em mecanismos de mediação, arbitragem ou conciliação.
Finalmente, é importante referir que governar é negociar. E negociar não é fraqueza, é um acto de grandeza. Trata-se de mostrar que o poder está ao serviço da cidadania, que as instituições nascem da confiança e não da imposição.
No contexto angolano, a recente circular do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos deveria servir mais como impulso para reforçar os canais de diálogo e não como anúncio de sanções automáticas. A greve deve ser entendida como um apelo à negociação, e não como afronta irreversível.
Se o Estado quer ser forte e respeitado, que o seja porque ouve e se faz ouvir, porque propõe e se propõe, porque media e não simplesmente manda. Governa-se para ser legítimo, e isso exige diálogo, negociação e participação.
Que Angola caminhe para uma cultura de governação onde a palavra preceda o veto, onde a autoridade se baseie no reconhecimento mútuo e onde o conflito se converta em plataforma de fortalecimento institucional.
