Opinião
Governança Judicial em Angola: entre a esperança tecnológica e os desafios estruturais

Num momento em que Angola se esforça por construir instituições mais eficazes, justas e transparentes, a justiça permanece um dos sectores com maior défice de confiança pública. A morosidade processual, a opacidade decisória e o fraco acesso à informação continuam a ser entraves estruturais à afirmação do Estado Democrático de Direito.
É neste cenário que surge uma proposta de Governança Judicial com recurso às Tecnologias de Informação e Comunicação, desenvolvida por Denílson Duro no âmbito do Mestrado em Governação e Gestão Pública da Universidade Agostinho Neto – Faculdade de Direito através do Centro de Pesquisa em Políticas Públicas e Governação Local (CPPPGL), constitui uma tentativa ousada e estratégica de modernizar e tornar mais eficaz a administração da justiça em Angola. Numa altura em que se exige do Estado angolano um maior compromisso com a transparência, a equidade e a confiança institucional, a iniciativa em causa procura oferecer soluções concretas para um dos sectores mais criticados e menos eficientes da função pública: o sistema judicial.
A proposta não se limita à informatização dos tribunais ou à digitalização de processos. Ela propõe uma mudança estrutural e sistémica do modo como se pensa, organiza e exerce a justiça no país. Assente no conceito de governança judicial, o estudo aborda a articulação entre tecnologia, políticas públicas, gestão do conhecimento, interoperabilidade e inclusão social. Porém, como qualquer proposta de transformação institucional, o projecto de Denílson Duro carrega consigo tanto virtudes transformadoras como riscos e obstáculos que merecem análise crítica.
1. Uma Abordagem Estratégica e Sistémica da Justiça
A proposta de governança judicial com base em tecnologias de informação e comunicação distingue-se pela visão holística, que ultrapassa a simples aplicação de tecnologia. Em vez de apenas implantar sistemas informáticos nos tribunais, o foco está na transformação organizacional e na integração de todos os actores do sistema judicial.
Segundo Hammergren (2007), uma reforma judicial eficaz exige mais do que mudanças legislativas ou informatização: requer “melhorias coordenadas na administração, gestão, capacitação e estrutura organizacional”. Essa ideia é também reforçada por Garapon (2001), que entende que “não basta informatizar, é preciso reformular a forma de pensar a justiça”.
2. Interoperabilidade e Partilha de Informação: O Coração da Reforma
O centro da proposta reside na criação de um sistema interligado de informação, capaz de conectar tribunais, Ministério Público, Serviço de Investigação Criminal (SIC), Ordem dos Advogados, serviços de assistência jurídica e até mesmo autoridades tradicionais. A partilha de informação é essencial para garantir maior celeridade e evitar redundâncias.
De acordo com Castells (2011), numa sociedade em rede, “a informação é o principal recurso estratégico das instituições públicas”, e a sua circulação deve obedecer a princípios de interoperabilidade, segurança e acessibilidade. A fragmentação da informação impede decisões eficazes e limita o exercício da cidadania plena.
3. Celeridade Processual e Combate à Corrupção
A lentidão processual é reconhecida como um dos principais factores de descredibilização do sistema judicial angolano. A digitalização dos actos judiciais pode reduzir significativamente os prazos e garantir a rastreabilidade das decisões.
Segundo Prado (2016), “a tecnologia pode aumentar a transparência judicial se acompanhada de mecanismos institucionais que garantam acesso à informação, prestação de contas e responsabilização dos actores judiciais”. Assim, a informatização pode ser um antídoto eficaz contra a corrupção, desde que aliada a uma cultura institucional de integridade.
4. Lições do Passado: Evitar a Repetição dos Mesmos Erros
Apesar do potencial transformador da tecnologia, a experiência angolana em matéria de informatização de serviços públicos tem mostrado fragilidades. A digitalização do Bilhete de Identidade, do registo criminal ou da administração dos actos registrais e notariais nem sempre resultou em ganhos reais para os cidadãos.
Para Heeks (2002), muitos projectos de governação electrónica falham nos países em desenvolvimento porque ignoram “os contextos sociais, institucionais e culturais locais”, apostando em soluções tecnológicas importadas que não se adaptam à realidade. Por isso, as reformas devem ser localmente enraizadas e progressivamente ajustadas.
5. Integração do Pluralismo Jurídico: Um Desafio de Inclusão
A coexistência entre o direito formal e as práticas tradicionais é uma característica do sistema jurídico angolano. Integrar autoridades tradicionais num modelo digital de justiça exige sensibilidade cultural e jurídica.
Boaventura de Sousa Santos (2002) alerta para a “linha abissal” que separa o direito ocidental da justiça comunitária. Ele defende que a superação dessa linha exige “tradução intercultural” e não mera subsunção de um modelo ao outro. Assim, a tecnologia deve servir de ponte, e não de instrumento de exclusão.
6. Capacitação e Mudança Cultural: Condição para a Sustentabilidade
A implementação de TICs exige mais do que infra-estruturas: necessita de pessoas capacitadas e de uma cultura organizacional aberta à mudança. Sem isso, qualquer sistema está fadado ao fracasso.
North (1990) sustenta que “as instituições são formadas tanto por regras formais quanto por normas informais, e estas últimas são decisivas para a eficácia das reformas”. Assim, é imprescindível investir em capacitação técnica e mudança de mentalidade dos actores da justiça.
7. Sustentabilidade Financeira: O Calcanhar de Aquiles da Reforma
A digitalização da justiça exige recursos financeiros substanciais e contínuos. Não se trata de um investimento único, mas de um compromisso de longo prazo com actualizações, segurança digital, formação e manutenção.
Segundo Bekkers & Homburg (2007), “o sucesso dos sistemas de informação pública depende menos da tecnologia em si e mais da capacidade política e financeira de os manter em funcionamento”. Em países como Angola, com limitações orçamentais, a sustentabilidade deve ser garantida por meio de parcerias, fundos multilaterais e prioridade orçamental.
Considerações Finais: Inovar com Realismo e Responsabilidade
A proposta de Governança Judicial com TICs apresenta-se como uma oportunidade histórica para modernizar o sistema judicial angolano. Contudo, essa transformação não será possível sem enfrentar os desafios estruturais já identificados: infraestrutura precária, resistência cultural, ausência de capacitação e limitações financeiras.
Inovar com responsabilidade significa reconhecer que a tecnologia é apenas parte da solução. O essencial continua a ser a vontade política, o compromisso institucional e o envolvimento cidadão. Só assim a justiça digital poderá cumprir a sua promessa de tornar-se um instrumento efectivo de equidade, dignidade e progresso para todos os angolanos.
Portanto, a pesquisa de Denílson Duro insere-se numa nova geração de propostas que compreendem que tecnologia sem governança é ineficaz, e que justiça sem participação é injusta. O seu modelo conceptual é tecnicamente sólido, politicamente oportuno e socialmente relevante. No entanto, como qualquer proposta transformadora, dependerá de um compromisso político sério, de liderança institucional corajosa e de uma sociedade civil vigilante e participativa.
Não se trata de substituir juízes por computadores, mas de usar os meios digitais para garantir que nenhum angolano seja privado de justiça por morosidade, corrupção ou desorganização. O futuro da justiça angolana está intimamente ligado à sua capacidade de se reinventar — com ética, inteligência e inclusão.