Análise
Estratégia ausente, Segurança Pública fragilizada

A crise de segurança pública que se manifesta com toda a sua intensidade nesta segunda-feira, 28, durante os tumultos associados à paralisação dos taxistas, revelou não apenas falhas operacionais graves da Polícia Nacional, mas, sobretudo, a ausência de uma Estratégia Nacional de Segurança Pública assente na inteligência antecipatória e na gestão integrada de riscos. Os actos de vandalismo, pilhagem e arruaça, ocorridos em plena luz do dia, em zonas densamente povoadas como o Kilamba Kiaxi, demonstraram a obsolescência de um modelo policial fortemente reactivo, incapaz de antecipar, conter e neutralizar ameaças urbanas previsíveis.
Conforme defende David Bayley (2001), um dos mais respeitados investigadores da segurança pública, “as polícias modernas não podem limitar-se a reagir ao crime; elas devem desenvolver estratégias baseadas em informação e participação comunitária para prevenir os delitos antes que ocorram”. Em Angola, continuamos presos a uma doutrina de presença musculada e punitiva, que fracassa sempre que o contexto exige capacidade de previsão, coordenação e resposta técnica imediata.
1. A Falência da Abordagem Reactiva: Uma Análise Crítica
A presença policial só depois do desenrolar de actos violentos é expressão de um sistema institucional alheio aos princípios contemporâneos da segurança urbana, cuja gestão deve estar ancorada, segundo Bittner (1990), na lógica da “acção orientada pela antecipação e resolução de conflitos, e não pela imposição da força após o colapso da ordem”.
As falhas identificadas são estruturais e sistemáticas:
Planeamento Estratégico Proactivo: inexistência de cenarização e preparação para eventos previsíveis;
Gestão de Inteligência e Informação: fragilidade na recolha, tratamento e uso de dados para a tomada de decisão;
Coordenação Interinstitucional: desarticulação entre polícia, administrações locais, sociedade civil e transportadores;
Mobilização Operacional: baixa capacidade de distribuição táctica dos efectivos policiais em zonas críticas.
Segundo John Eck e William Spelman (1987), a polícia deve “identificar padrões de desordem e intervir nas causas estruturais dos conflitos, em vez de correr atrás das consequências”. Essa ausência de proactividade fragiliza o Estado perante os cidadãos, que perdem a confiança na sua capacidade de garantir segurança e estabilidade.
2. Por Uma Segurança Pública Antecipatória: Fundamentos e Diretrizes Técnicas
A transformação do modelo de segurança pública angolano passa pela institucionalização de uma abordagem de antecipação estratégica, tal como preconizada por Ratcliffe (2016), defensor da “inteligência criminal orientada por dados” como ferramenta central na governação da segurança urbana.
a) Unidades Técnicas de Análise de Dados e Inteligência Urbana (UTAD-IU)
Inspiradas no modelo CompStat de Nova Iorque (Bratton, 1998), estas unidades devem usar Big Data, machine learning e análise de sentimento nas redes sociais, identificando focos de tensão, comportamento colectivo anómalo e aglomerações com potencial de desordem.
b) Sistema de Monitoramento de Tensões Sociais (SMTS)
Baseado na proposta de segurança cidadã defendida por Paulo Sérgio Pinheiro (2004), este sistema integraria dados socioeconómicos, indicadores de pobreza, desemprego, mobilização sindical e movimentações espontâneas, para activar alertas preventivos nos comandos policiais e instituições cívicas.
c) Modelos de Cenarização e Simulação de Crises (MCSC)
O planeamento por cenários, conforme defendido por Peter Schwartz (1996), deve integrar simulações de resposta multissectorial a eventos urbanos de alto risco, permitindo que o Estado teste e actualize os seus planos de contingência de forma dinâmica e sistemática.
d) Protocolos de Coordenação Civil-Policial (PCCP)
De acordo com a doutrina de “policiamento orientado para a resolução de problemas” (Goldstein, 1979), as acções policiais devem ser integradas com estruturas administrativas, conselhos locais e associações de bairro, criando canais de prevenção partilhada e resposta co-responsável.
3. A Tecnologia como Pilar Estrutural da Segurança Pública Moderna
A segurança pública não pode prescindir da tecnologia. Conforme defendido por Mark Moore (2002), o Estado deve “empregar a inovação tecnológica para maximizar a legitimidade e a eficácia das instituições policiais”.
Sugere-se:
Plataformas de Georreferenciação Policial (GEO-POL) para mapeamento de crimes e zonas críticas em tempo real;
Sistemas de Vídeo-Vigilância com Reconhecimento Facial em centros urbanos estratégicos;
Uso de Drones para Monitoramento Aéreo durante manifestações e greves;
Redes de Comunicação Segura entre comandos e equipas de campo;
Apps Móveis de Denúncia Anónima e Alertas Comunitários, seguindo o modelo do Neighbourhood Watch System britânico.
4. Requalificação da Doutrina de Acção Policial
A mudança de paradigma exige a reconfiguração do perfil do agente da ordem. Segundo Herman Goldstein (1990), “o policiamento moderno deve actuar como solucionador de problemas sociais complexos, não como mero executor de ordens”.
Propostas:
Actualização dos currículos das escolas de polícia, com introdução de módulos em tecnologias de vigilância, gestão de dados, sociologia urbana e mediação de conflitos;
Criação de Indicadores de Desempenho Preventivo, não apenas punitivo;
Gabinetes Municipais de Segurança Participativa, como fóruns permanentes de diálogo;
Adopção de um Código de Ética Policial baseado em Direitos Humanos, promovendo uma cultura de segurança cidadã e proximidade.
5. A Responsabilização como Pilar Ético da Função Policial
Não pode haver estratégia eficaz sem responsabilização. Conforme Zaffaroni (2011), “a impunidade institucional mina o Estado de Direito e transforma o aparelho de segurança em ameaça ao próprio cidadão”.
A exoneração do então Comandante-Geral da PN, Paulo de Almeida, em 2022, foi uma resposta política a uma falha técnica. Em 2025, diante de danos mais extensos, a ausência de consequências revela um duplo padrão de gestão da responsabilidade pública.
Lideranças na segurança devem ser atribuídas com base em critérios técnicos, mérito estratégico e compromisso com os princípios republicanos.
Conclusão: Segurança Pública como Pilar de Estabilidade e Desenvolvimento
Angola vive um momento de transição histórica em que as velhas práticas já não respondem aos novos desafios. Continuar a apostar num policiamento reactivo e politizado é perpetuar o ciclo da instabilidade e do medo colectivo.
É imperativo adoptar uma estratégia nacional de segurança pública assente em inteligência, tecnologia, participação cidadã e gestão orientada por dados, como defendem autores como Bratton (1998), Bayley (2001) e Ratcliffe (2016). Esta transformação não é apenas técnica: é civilizacional.
Como bem afirma Moore (1998), “a segurança não é apenas ausência de crime, é a presença de justiça, confiança e capacidade institucional”. E é isso que o povo angolano espera: uma segurança pública que proteja, previna e sirva.