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Análise

Doação ou corrupção? O fim dos fertilizantes gratuitos em Angola

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O recente anúncio feito pelo ministro da Agricultura e Florestas de Angola, Isaac dos Anjos, de que o Governo deixará de entregar gratuitamente fertilizantes e sementes a partir da campanha agrícola 2025/2026, abre um debate delicado sobre o papel do Estado na promoção do sector agrário e o combate à corrupção que tem minado a eficácia das políticas públicas. A decisão, sustentada na ideia de que o Estado não deve competir com o sector privado, procura favorecer o mercado. Contudo, levanta-se a seguinte questão: as doações deixaram de servir à agricultura ou passaram a alimentar práticas ilícitas?

Como defendia o economista Amartya Sen (2000), o desenvolvimento só é real quando promove liberdade e capacidade de escolha às populações. Em Angola, onde grande parte dos agricultores ainda depende de apoios estatais, esta medida parece deixar muitos à margem da chamada liberdade de escolha, porque simplesmente não terão alternativas acessíveis.

A verdade por trás das doações: ajuda ou fonte de desvios?

A retirada dos apoios foi justificada pelo ministro com base na constatação de que os fertilizantes doados pelo Governo estão a ser alvo de desvios e contrabando, alimentando um mercado paralelo de revenda ilegal. Esta realidade, infelizmente, não é nova no nosso país. Como salientou a Transparency International (2021), a corrupção e o uso indevido de bens públicos no sector agrícola têm contribuído para a ineficiência das políticas públicas em África.

Neste sentido, o Governo avança para uma posição mais firme, propondo que a venda de fertilizantes e sementes fornecidos gratuitamente pelo Estado passe a ser criminalizada. Esta medida, embora tardia, é necessária para restaurar a credibilidade das políticas agrícolas. A revenda desses insumos, muitas vezes a preços especulativos, mina o objectivo de promover a produção nacional e compromete a justiça na distribuição dos apoios.

Experiências como a do Quénia, que digitalizou os seus sistemas de distribuição de fertilizantes subsidiados, demonstram que a introdução de penas legais e mecanismos de controlo pode reduzir significativamente os desvios. Segundo dados da FAO (2022), o país reduziu em mais de quarenta por cento o contrabando interno após introduzir códigos de rastreamento e registo biométrico dos produtores.

Lições internacionais: regulamentar sim, abandonar não

A eliminação das doações, por si só, não garante justiça nem eficiência. Gana, por exemplo, com o programa Planting for Food and Jobs, optou por subsidiações controladas, permitindo que os produtores comprem os insumos a preços reduzidos, sem tornar o Estado refém da corrupção. Como salienta Osei-Asare (2019), o papel do Estado deve ser estratégico, não ausente.

No Brasil, o PRONAF oferece uma alternativa mais sólida ao doar recursos financeiros, sob forma de crédito rural acessível, em vez de insumos físicos, minimizando os riscos de desvios. Schneider (2009) argumenta que a assistência técnica e o acesso a crédito com juros baixos é mais eficaz do que a entrega directa de insumos, pois promove autonomia produtiva e dignidade.

A Etiópia, por sua vez, apostou nas cooperativas como instrumento de distribuição dos fertilizantes. Spielman et al. (2011) demonstraram que agricultores organizados em cooperativas têm menos tendência de desviar insumos e maior capacidade de pressão sobre os mercados locais.

Caminhos sustentáveis para Angola

Para que Angola não troque um problema, a corrupção nas doações, por outro, a exclusão produtiva dos pequenos agricultores, é necessário adoptar um plano nacional de transição que inclua:

1. Criminalização clara e eficaz da revenda de insumos doados, com penas exemplares e envolvimento comunitário na fiscalização.
2. Sistema de vales agrícolas digitais, com controlo por registo biométrico dos beneficiários e uso de plataformas digitais, tal como experimentado no Senegal e no Quénia.
3. Reforço da produção nacional de fertilizantes, com incentivos à indústria local e parcerias público-privadas para reduzir a dependência de importações.
4. Educação agrícola e capacitação técnica, reforçando a consciência cívica dos produtores e o uso responsável dos insumos.
5. Incentivo às cooperativas agrícolas, com estatuto legal e apoio logístico, para actuar como intermediárias legítimas entre o Estado e os camponeses.

Conclusão: corrigir os erros, não abandonar o povo

O combate à corrupção nas políticas agrícolas deve ser prioridade. Mas erramos quando, para eliminar os desvios, se abandona os mais vulneráveis. O camponês pobre, que aguarda a chegada de fertilizantes para alimentar a sua família e abastecer o mercado local, não pode pagar o preço da má gestão de outros.

Como lembra Joseph Stiglitz (2010), o mercado não é neutro. Sem políticas inclusivas, ele apenas reproduz as desigualdades. O Estado angolano tem de modernizar a sua actuação, sim, mas com justiça social, responsabilidade fiscal e respeito pela dignidade do produtor rural.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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