Ligar-se a nós

Análise

Centralidades angolanas: cidades modernas com governação do século XIX?

Publicado

em

As Novas Centralidades representam um dos maiores investimentos urbanísticos do pós-guerra em Angola, constituindo não apenas um esforço de requalificação e expansão urbana, mas também uma tentativa de reorganizar a vida social, económica e espacial das grandes cidades. Porém, ao longo da última década, tornou-se evidente que a magnitude e a complexidade destas unidades residenciais e de serviços não foram acompanhadas por um modelo de governação, financiamento e administração que correspondesse às exigências da sua funcionalidade.

A literatura especializada demonstra que uma centralidade não é simplesmente um conjunto de edifícios, mas sim um sistema urbano funcional, um ecossistema social e económico que carece de regras próprias, finanças próprias e administração própria para garantir a sua sustentabilidade. Isto é reforçado por autores como Lewis Mumford, Jane Jacobs, Manuel Castells e Saskia Sassen, cujas reflexões ajudam a compreender por que razão projectos urbanísticos desta natureza exigem modelos de governação diferenciados.

Assim, defende-se neste artigo que as centralidades angolanas necessitam urgentemente de:

1. um estatuto jurídico ajustável, compatível com a sua escala e multifuncionalidade;

2. um modelo de sustentabilidade financeira, sustentado na gestão local das rendas e receitas;

3. uma tipologia administrativa própria – Comuna Urbana ou Distrito Especial.

1. Estatuto Ajustável: A Cidade Dentro da Cidade

A filosofia urbanística contemporânea defende que a organização do território urbano deve atender à função, densidade, vocação económica e complexidade social de cada unidade. Lewis Mumford (1961), na obra The City in History, observa que “a cidade é um sistema orgânico de funções interdependentes”, e que, sempre que uma unidade urbana ultrapassa a escala de bairro, deve possuir um estatuto adaptado à sua capacidade funcional.

Do mesmo modo, Jane Jacobs (1961), em The Death and Life of Great American Cities, afirma que “os bairros só funcionam quando possuem autonomia suficiente para gerir as suas próprias dinâmicas, serviços e conflitos”. Ora, quando analisamos a Cidade do Kilamba, o Sequele, o Zango, o Dundo ou outras centralidades do território nacional, verificamos que superam amplamente a noção tradicional de bairro. São verdadeiras centralidades, com:

escolas, hospitais, mercados;

centros comerciais e equipamentos colectivos;

estradas ordenadas, parques e serviços urbanos;

população comparável à de municípios rurais inteiros.

A sua dependência de administrações municipais saturadas é contrária ao que a ciência urbanística recomenda. Manuel Castells (1989), em The Informational City, defende que “a cidade contemporânea exige estruturas flexíveis, capazes de se adaptarem às funções que produzem”.

Assim, um Estatuto Ajustável torna-se não apenas desejável, mas absolutamente indispensável.

Esse estatuto deve prever:

regulamentos internos adequados;

capacidade de planificação urbanística própria;

gestão local dos equipamentos públicos;

mecanismos de participação comunitária;

estruturas de governação público-privada.

Sem este enquadramento, as centralidades continuarão a sofrer aquilo que Saskia Sassen (2001) classifica como “urbanismo disfuncional por ausência de centros de decisão local”.

2. Sustentabilidade Financeira: A Cidade Deve Financiar-se a Si Mesma

Uma das insuficiências estruturais das Novas Centralidades é a ausência de um modelo económico de longo prazo. Os empreendimentos foram concebidos como produtos imobiliários, mas não como ecossistemas financeiros. A literatura sobre cidades sustentáveis é unânime: nenhuma unidade urbana sobrevive sem um modelo financeiro próprio.

Richard Florida (2012) reconhece que “as cidades modernas precisam de mecanismos internos de geração de receitas para garantir a manutenção dos seus serviços essenciais”. O financiamento exclusivamente centralizado, como ainda prevalece em Angola, conduz inevitavelmente à deterioração das infra-estruturas.

As rendas e prestações devem financiar a própria centralidade

As receitas provenientes:

do arrendamento,

da renda resolúvel,

da compra dos apartamentos,

devem ser canalizadas para um Fundo de Sustentabilidade Local, vocacionado para a manutenção dos:

elevadores,

escadas e áreas comuns,

jardins e espaços verdes,

iluminação pública,

saneamento básico,

segurança e vigilância,

equipamentos culturais, desportivos e sociais.

David Harvey (2008), em The Right to the City, explica que “a infra-estrutura urbana só se mantém se houver reinvestimento contínuo do excedente económico no próprio espaço urbano”.

É este o modelo que Angola deve adoptar com urgência.

3. As Parcerias Público-Privadas (PPP) como catalisador económico

Elinor Ostrom (1990), Prémio Nobel da Economia, demonstra que “a gestão dos bens colectivos é mais eficiente quando combina iniciativa pública, privada e comunitária”.
Isto significa que, nas centralidades, o Estado deve promover:

parcerias com micro e pequenas empresas para manutenção urbana;

sistemas de recolha de lixo geridos localmente;

cooperativas de limpeza e jardinagem;

concessões de espaços comerciais;

modelos de segurança comunitária profissionalizada.

Este ecossistema cria emprego, reduz custos e garante sustentabilidade.

4. Tipologia Administrativa: Comuna Urbana ou Distrito Especial?

A falta de uma tipologia administrativa própria tem sido um factor de bloqueio institucional. As centralidades não possuem:

orçamento próprio;

administração local estruturada;

capacidade de cobrança de taxas;

autoridade para gerir conflitos urbanos.

Dependem de estruturas municipais já sobrecarregadas. Pierre Calame (2009) defende que “as unidades urbanas devem ser administradas na escala adequada às suas necessidades funcionais”.

Administrar o Kilamba como um bairro do Município de Belas é um contrassenso estrutural.

Opção A — Comuna Urbana

A elevação a Comuna conferiria:

orçamento e planificação próprios;

administrador com autoridade real;

capacidade de arrecadação e gestão de receitas;

instrumentos de gestão territorial.

É um modelo eficaz e amplamente utilizado a nível internacional.

Opção B — Distrito Urbano Especial

É a solução mais moderna e recomendada pela literatura. Cidades como Singapura, Barcelona, Seul e Shenzhen adoptam distritos especiais para gerir áreas de grande densidade populacional e económica.

Saskia Sassen sublinha que “os distritos especiais permitem um alinhamento mais eficiente entre governação, economia e complexidade urbana”.
Aplicado a Angola, significaria:

conselho administrativo misto (Estado + moradores + sector privado);

governação profissionalizada;

autonomia funcional e financeira.

Opção C — Manter como Bairro (o caminho para o fracasso)

Mike Davis (2007) alerta que “grandes projectos habitacionais, quando desprovidos de administração própria, tornam-se megabairros degradados”.

Uma realidade que Angola deve evitar a todo o custo.

5. Conclusão: As Centralidades Precisam de Instituições, Finanças e Estatuto Próprio

As Novas Centralidades constituem o maior laboratório urbanístico de Angola.
Mas falta-lhes aquilo que os grandes pensadores urbanos consideram essencial: instituições próprias, finanças próprias e administração própria.

Assim, torna-se urgente:

1. Criar um Estatuto Jurídico Ajustável, à altura da sua complexidade funcional;

2. Implementar um modelo de sustentabilidade financeira, baseado nas receitas internas;

3. Definir uma tipologia administrativa moderna, como Comuna Urbana ou Distrito Especial.

Se Angola falhar neste processo, corre o risco de transformar as centralidades em “guetos verticais”, advertência feita por Loïc Wacquant (2008) nas suas análises sobre segregação urbana.

Mas, se actuar com visão estratégica, poderá transformar as centralidades em verdadeiros pólos de inovação social, qualidade de vida e modernidade urbana.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

Continuar a ler
Clique para comentar

Deixar uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Publicidade

Radio Correio Kianda

Publicidade




© 2017 - 2022 Todos os direitos reservados a Correio Kianda. | Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem prévia autorização.
Ficha Técnica - Estatuto Editorial RGPD