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Análise

Análise geopolítica do Acordo de Paz entre a RDC e Ruanda assinado em Washington

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O acordo de paz assinado em 27 de Junho de 2025 entre a República Democrática do Congo (RDC) e a República do Ruanda, mediado pelos Estados Unidos e pelo Qatar, é um marco na tentativa de resolver um conflito de três décadas no leste da RDC, que resultou em milhares de mortes, 7 milhões de deslocados e violações generalizadas de direitos humanos. Assinado pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros Thérèse Kayikwamba Wagner (RDC) e Olivier Nduhungirehe (Ruanda), com a presença do Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, o documento busca abordar as tensões bilaterais, focando na retirada de tropas ruandesas, na neutralização de grupos armados como as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR) e o M23, e na integração económica regional.

Contudo, a ausência do M23 nas negociações, a falta de mecanismos robustos de implementação e os interesses externos sobre os minerais da RDC levantam sérias dúvidas sobre sua eficácia. Esta análise detalha os pontos principais do acordo, suas implicações, limitações e o contexto geopolítico, respondendo às questões levantadas sobre a responsabilidade de Ruanda, o papel do M23 e o estado atual do conflito.

1. Estrutura e Objectivos do Acordo

O acordo, formalizado em Washington, D.C., sob os auspícios da Declaração de Princípios de 25 de abril de 2025, baseia-se em documentos anteriores, como o Plano Harmonizado para a Neutralização das FDLR e Desengajamento de Forças (CONOPS) de 31 de outubro de 2024, e resoluções da ONU, como a Resolução 2773 do Conselho de Segurança (21 de fevereiro de 2025). Seus principais pontos incluem:

Respeito à Integridade Territorial: Ambos os países comprometem-se a respeitar a soberania e as fronteiras um do outro, abstendo-se de ações ou retórica hostil.

Desengajamento de Forças: Ruanda deve retirar suas tropas (estimadas entre 3.000 e 7.000) do leste da RDC em 90 dias, enquanto a RDC compromete-se a neutralizar as FDLR, grupo Hutu ligado ao genocídio de 1994.

Neutralização de Grupos Armados: O acordo prevê o desarmamento e a “integração condicional” de combatentes, incluindo do M23, nas forças de segurança congolesas (FARDC e PNC), com critérios rigorosos baseados em aptidão moral e ausência de violações graves de direitos humanos.

Mecanismo Conjunto de Coordenação de Segurança: Estabelecido em 30 dias, visa monitorar a implementação do acordo, incluindo a verificação da retirada de tropas e a neutralização das FDLR.

Integração Económica: Propõe um quadro de integração económica regional em 90 dias, com foco na desriscação das cadeias de suprimento de minerais (cobalto, lítio, coltan) e parcerias com investidores dos EUA.

Retorno de Refugiados e Deslocados: Compromete-se a facilitar o retorno seguro e voluntário de deslocados internos e refugiados, em conformidade com o direito internacional.

Resolução Pacífica de Disputas: Enfatiza a diplomacia em vez de hostilidades, com apoio da União Africana (UA), Qatar e Togo.

O acordo entrou em vigor imediatamente após a assinatura e prevê uma cimeira de Chefes de Estado em Washington para consolidar os compromissos, com data a definir.

2. Contexto do Conflito e o Papel de Ruanda

O conflito no leste da RDC, intensificado desde a década de 1990, tem raízes no genocídio ruandês de 1994, quando Hutus responsáveis pelas mortes de Tutsis e Hutus moderados fugiram para a RDC, formando as FDLR. Desde então, mais de 100 grupos armados operam na região, alimentados por disputas étnicas, recursos minerais e ingerência externa. O M23, composto principalmente por Tutsis congoleses, ressurgiu em 2021 e, em 2025, capturou cidades estratégicas como Goma (janeiro) e Bukavu (fevereiro), controlando áreas ricas em minerais e estabelecendo administrações paralelas.

Ruanda Assume Responsabilidade?

A assinatura do acordo por Ruanda não constitui uma admissão explícita de apoio ao M23, algo que Kigali sempre negou, apesar de relatórios da ONU, EUA e potências ocidentais confirmarem o fornecimento de armas e tropas. O compromisso de retirar forças e “levantar medidas defensivas” sugere um reconhecimento implícito da presença militar ruandesa na RDC, mas a retórica oficial de Kigali, expressa pelo Ministro Olivier Nduhungirehe, condiciona o desengajamento à neutralização das FDLR, que Ruanda considera uma ameaça à sua segurança. Paul Kagame, presidente ruandês, nunca admitiu diretamente o apoio ao M23, mas também nunca negou categoricamente, mantendo uma ambiguidade estratégica. A assinatura do acordo, sob pressão dos EUA, pode ser interpretada como uma concessão pragmática para evitar sanções e manter influência regional, mas não uma assunção clara de responsabilidade.

Pronunciamento do M23
O M23, liderado por Corneille Nangaa na Aliança do Rio Congo (AFC), rejeitou categoricamente o acordo, afirmando que “qualquer decisão sobre nós, sem nós, é contra nós”. Em declarações à Associated Press, Nangaa e o porta-voz Oscar Balinda exigiram negociações directas com Kinshasa, destacando queixas de marginalização dos Tutsis congoleses. A ausência do grupo nas negociações de Washington, apesar de conversações paralelas em Doha mediadas pelo Qatar, é um ponto crítico, pois o M23 controla áreas estratégicas e não demonstra intenção de desarmar ou ceder territórios.

Estado Actual no Leste da RDC
O conflito permanece ativo, com o M23 mantendo o controle de Goma, Bukavu, Rubaya e dois aeroportos, administrando impostos e nomeando governadores. Confrontos esporádicos com milícias Wazalendo, apoiadas pelo governo congolês, continuam, com relatos de 7 mil mortos e 1 milhão de deslocados em 2025. A situação humanitária é crítica, com violações de direitos humanos, incluindo execuções sumárias e violência sexual, documentadas pela Amnistia Internacional. O aeroporto de Goma permanece sob controle do M23, dificultando a entrega de ajuda humanitária.

3. Pontos Fortes do Acordo

Mediação Internacional: A participação dos EUA, Qatar, UA e Togo confere peso diplomático, contrastando com esforços regionais anteriores, como o Processo de Luanda, que colapsaram.

Foco na Segurança: A criação do mecanismo conjunto de coordenação de segurança em 30 dias é um passo para monitorar a retirada de tropas e neutralizar grupos armados, com apoio da MONUSCO.

Integração Económica: A promessa de cadeias de suprimento minerais transparentes, com envolvimento dos EUA, pode atrair investimentos e reduzir o comércio ilícito, estimado em 1 bilião de dólares anuais.

Retorno de Deslocados: O compromisso com o retorno seguro de 7 milhões de deslocados e refugiados é um avanço humanitário, se implementado.

4. Limitações e Críticas

Ausência do M23: A exclusão do M23, que controla territórios estratégicos, é uma falha estrutural. Sem a adesão do grupo, o desarmamento e a reintegração são improváveis, como apontado por Liam Karr do American Enterprise Institute.

Falta de Mecanismos de Implementação: O acordo carece de sanções claras para descumprimento e depende de forças congolesas subfinanciadas para neutralizar as FDLR, uma tarefa historicamente frustrada.

Silêncio sobre Justiça: Não há menção a responsabilização por violações de direitos humanos, o que perpetua a impunidade, como criticado pela Amnistia Internacional e pelo Nobel da Paz Denis Mukwege.

Interesses Externos: A ênfase dos EUA no acesso a minerais (cobalto, lítio, coltan) levanta temores de exploração neocolonial, com moradores de Goma, como Hangi Muhindo, alertando contra a venda de recursos congoleses.

Histórico de Fracassos: Acordos anteriores, como os mediados por Angola em 2024, falharam devido à falta de compromisso mútuo. O ceticismo expresso por Joseph Kabila no X, que chamou o acordo de “show diplomático”, reflecte a desconfiança generalizada.

5. Reflexões Geopolíticas

Resolve Tudo?
O acordo não resolve o conflito na RDC, que envolve mais de 100 grupos armados e questões estruturais como desigualdade, corrupção e disputa por recursos. Foca apenas no M23 e nas FDLR, ignorando outros atores, como milícias Mai-Mai e a influência de Uganda e Burundi, que também têm tropas na região. A dependência de forças congolesas para neutralizar as FDLR e a rejeição do M23 ao acordo sugerem que a violência persistirá. Além disso, a ausência de um cronograma claro para o desarmamento do M23 e a falta de garantias para civis, como apontado por Tom Fletcher da OCHA, comprometem a estabilidade.

Implicações Regionais e Globais
O acordo reflete a estratégia dos EUA de reafirmar influência na África, competindo com a China, que domina a mineração de cobalto na RDC. A retórica de Trump, que celebrou o acordo como uma “vitória gloriosa” e destacou o acesso a minerais, evidencia interesses económicos sobrepostos à paz. A mediação do Qatar, paralela às negociações com o M23 em Doha, sugere um esforço coordenado, mas a falta de integração entre os processos enfraquece a coerência. A UA e a MONUSCO, embora apoiem o acordo, têm influência limitada, enquanto a retirada de tropas da SADC em maio de 2025 deixa a RDC vulnerável.

6. Perspectivas para o Futuro

Para o acordo ter sucesso, são necessários:

Inclusão do M23: Negociações diretas com o grupo, possivelmente via Qatar, são essenciais para garantir o desarmamento e a reintegração.

Fortalecimento da Implementação: O mecanismo de coordenação de segurança deve incluir verificação independente pela MONUSCO e sanções para violações.

Justiça e Reparação: Um tribunal para investigar atrocidades, como sugerido por Mukwege, é crucial para romper o ciclo de impunidade.

Gestão de Recursos: A exploração mineral deve priorizar benefícios locais, com transparência para evitar a perpetuação de desigualdades.

Fortalecimento Regional: A UA e a CEEAC devem assumir papéis mais ativos, reduzindo a dependência de mediadores externos.

Sem essas medidas, o acordo corre o risco de se tornar mais um na longa lista de iniciativas frustradas, como os processos de Luanda e Nairobi. A pressão dos EUA e do Qatar pode forçar compromissos de curto prazo, mas a paz duradoura exige abordar as raízes étnicas, económicas e políticas do conflito.

Conclusão

O acordo de paz RDC-Ruanda de 27 de junho de 2025 é um passo diplomático significativo, mas sua implementação enfrenta obstáculos devido à exclusão do M23, à falta de mecanismos robustos e aos interesses externos sobre os minerais da RDC. Ruanda não assume explicitamente o controle do M23, mas sua assinatura sugere uma concessão sob pressão internacional. No terreno, o M23 mantém o controle de cidades-chave, e a violência persiste, agravando a crise humanitária. Num contexto global de tensões, como a suspensão da cooperação do Irão com a AIEA, o acordo reflete a dificuldade de resolver conflitos complexos em meio a interesses geopolíticos e retórica performativa. Para transformar este “momento de esperança”, como descrito por Trump, em paz duradoura, a RDC e Ruanda precisam de diálogo inclusivo, justiça para as vítimas e uma gestão equitativa dos recursos, com apoio regional e internacional comprometido.

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