Análise
Administradores nomeados, eleitos e burocráticos: entre a legitimidade popular e a profissionalização da gestão

A administração pública é o coração do funcionamento do Estado. Em Angola, onde o debate sobre a institucionalização das Autarquias Locais está cada vez mais presente, a figura do administrador municipal torna-se central. O modelo actual, marcado pela nomeação de administradores por parte da hierarquia central, levanta questões de legitimidade e proximidade com as comunidades. Ao mesmo tempo, cresce a expectativa de um sistema democrático mais participativo, onde administradores locais sejam escolhidos pelo voto.
A discussão não deve ser apenas sobre nomeação ou eleição, mas sobre o perfil do administrador que Angola precisa: um gestor com legitimidade democrática, mas também dotado de competências técnicas e sensibilidade social.
1. O Perfil do Administrador: Uma Leitura Clássica
De acordo com Max Weber (1922), a burocracia é a forma mais racional de dominação, baseada na hierarquia, nas normas escritas, na impessoalidade e na especialização funcional. O administrador burocrático, nesse modelo, assegura a previsibilidade, a continuidade e a estabilidade da máquina pública.
No entanto, como alerta Alberto Guerreiro Ramos (1966), quando a burocracia se distancia da realidade social, pode transformar-se numa máquina fria e desumana, ignorando as especificidades culturais e os anseios das comunidades. É por isso que a gestão pública não pode ser apenas técnica: precisa de legitimidade e participação cidadã.
Já Woodrow Wilson (1887), considerado um dos pais da Administração Pública, defendia a distinção entre política e administração. Para ele, a política formula os objectivos e a administração executa-os com racionalidade. Esta visão é particularmente relevante em Angola, onde muitas vezes o administrador local acumula funções políticas e técnicas, comprometendo a eficiência e a imparcialidade.
2. Administradores Nomeados: Eficiência Técnica ou Dependência Política?
Os administradores nomeados, escolhidos pela autoridade central, apresentam vantagens evidentes. Como refere Chiavenato (2014), “a liderança organizacional deve considerar, acima de tudo, a competência técnica e a capacidade de gerir processos”. Assim, a nomeação pode garantir que pessoas com experiência e conhecimento cheguem à função administrativa.
Entre as principais vantagens da nomeação destacam-se:
Eficiência e rapidez: não há necessidade de processos eleitorais demorados e dispendiosos.
Alinhamento com as políticas centrais: facilita a implementação uniforme das directrizes nacionais.
Substituição imediata: se o administrador não cumprir as expectativas, pode ser removido facilmente.
No entanto, o modelo de nomeação tem limites graves. Frequentemente, em Angola e noutros contextos africanos, os administradores são escolhidos com base em critérios políticos e partidários, e não por mérito. Isso gera desconfiança popular e fragiliza a legitimidade do gestor. Como nota Boaventura de Sousa Santos (2002), “a democracia não se esgota na legalidade do Estado, exige legitimidade social construída com e pelo povo”.
3. Administradores Eleitos: Democracia Local ou Risco de Populismo?
A eleição de administradores traz consigo a legitimidade democrática, um dos pilares da modernidade política. O voto popular confere ao administrador a condição de representante legítimo da comunidade.
As vantagens são claras:
Proximidade com a população: administradores eleitos tendem a conhecer melhor os problemas locais.
Prestação de contas: podem ser responsabilizados pelo eleitorado.
Maior participação do cidadão: fortalece a cultura democrática e o envolvimento da comunidade.
Porém, o modelo não está isento de riscos. A lógica eleitoral pode levar ao populismo, privilegiando medidas de curto prazo em detrimento de projectos estratégicos. Além disso, o facto de alguém ser popular não significa que tenha capacidade técnica para gerir recursos e planeamento.
A este respeito, Peter Drucker (1999) sublinha que “a administração é, sobretudo, fazer as coisas certas da forma certa”. A escolha de líderes apenas pela popularidade, sem critérios mínimos de competência, pode colocar em causa a qualidade da governação local.
4. O Administrador Burocrático e Profissional: Racionalidade e Impessoalidade
O administrador profissional ou burocrático, inspirado na teoria de Weber, caracteriza-se pela obediência a normas, pela impessoalidade e pela disciplina organizacional. A sua função é garantir a continuidade da máquina administrativa, independentemente das mudanças políticas.
As suas virtudes são a estabilidade, a previsibilidade e a imparcialidade. No entanto, como lembra Guerreiro Ramos, este modelo pode cair em disfunções, tornando-se rígido e resistente à inovação. A administração pública não pode ser apenas máquina, deve ser também sensibilidade social.
5. O Desafio Angolano: Entre a Legitimidade e a Competência
O grande dilema para Angola é como conciliar legitimidade popular e profissionalização técnica. O sistema actual de nomeação garante alinhamento central, mas gera distanciamento entre administração e comunidades. O sistema eleitoral, por outro lado, traria maior participação popular, mas pode abrir espaço para populismo e falta de qualificação.
A resposta pode estar num modelo híbrido:
1. Eleição democrática dos administradores, garantindo legitimidade popular.
2. Criação de critérios mínimos de qualificação e experiência, assegurando competência técnica.
3. Manutenção de uma carreira administrativa estável, com quadros técnicos que assegurem continuidade, mesmo quando há mudança política.
6. Caminhos para as Autarquias em Angola
A Constituição da República de Angola já prevê a implementação das autarquias locais, embora ainda não regulamentada plenamente. Esta será uma oportunidade única para repensar a forma de escolha dos administradores municipais.
Seguindo exemplos de países lusófonos, como Portugal e Brasil, Angola poderá adoptar um sistema em que os presidentes de câmara ou prefeitos sejam eleitos, mas sustentados por uma estrutura burocrática profissionalizada. Assim, combina-se a força do voto com a racionalidade técnica.
Finalmente, é importante reconhecer que o futuro da governação local em Angola dependerá da capacidade de criar administradores que sejam simultaneamente legítimos e competentes. O administrador que o país precisa não é apenas nomeado nem apenas eleito: é, sobretudo, um gestor profissional, comprometido com o interesse público, dotado de sensibilidade social e capacidade de inovação, mas também de disciplina burocrática.
Como bem afirma Boaventura de Sousa Santos (2002), “a democracia só se realiza plenamente quando é capaz de transformar a vida das pessoas”. Em Angola, isso significa criar um modelo de administração local que una o melhor da racionalidade burocrática de Weber, da eficiência de Chiavenato e Drucker, e da legitimidade participativa de Boaventura.
O verdadeiro desafio é este: garantir que os administradores locais sejam motores de desenvolvimento sustentável, inclusão social e cidadania activa, tornando os municípios não apenas espaços de gestão, mas verdadeiros territórios de transformação.