Análise
A escalada do conflito Camboja-Tailândia e suas implicações geopolíticas
O conflito armado entre Camboja e Tailândia, centrado na disputa territorial em torno do templo Prasat Ta Muen Thom, na fronteira entre a província tailandesa de Surin e a província cambojana de Oddar Meanchey, marca uma escalada preocupante de tensões históricas entre os dois países do Sudeste Asiático. Com pelo menos 12 mortos, majoritariamente civis, e milhares de deslocados, o confronto, iniciado ontem, expõe as fragilidades da diplomacia regional e os desafios de lidar com disputas territoriais herdadas do passado colonial.
Contexto e Raízes do Conflito
A disputa pelo templo Prasat Ta Muen Thom remonta a mapas coloniais franceses de 1907, que definiram fronteiras ambíguas entre o então Reino do Sião (Tailândia) e o Camboja sob domínio francês. Embora a Tailândia reivindique o templo com base em registros de 1935, que o colocam em seu território, o Camboja argumenta que a demarcação histórica favorece sua soberania. Essa controvérsia ganhou força em 2008, quando o Camboja tentou registrar o templo Preah Vihear como Patrimônio Mundial da UNESCO, desencadeando protestos tailandeses e confrontos armados intermitentes, como os de 2011. A atual escalada foi precedida por incidentes em maio de 2025, com a morte de um soldado cambojano, e intensificada por uma explosão de mina terrestre em 23 de julho, que mutilou soldados tailandeses, levando à ruptura diplomática com a retirada de embaixadores e a expulsão do embaixador cambojano de Bangkok.
As acusações mútuas sobre quem disparou primeiro e a controvérsia sobre as minas terrestres que a Tailândia alega serem russas e recém-colocadas, enquanto o Camboja as atribui a resíduos de guerras do século XX refletem a desconfiança profunda entre os dois lados. A troca de acusações, combinada com o uso de armamento pesado, incluindo foguetes BM-21 e ataques aéreos tailandeses com caças F-16, sinaliza uma escalada militar sem precedentes desde 2011.
Implicações do Conflito
1. Impacto Humanitário e Instabilidade Regional: A morte de civis, incluindo crianças, e o deslocamento de mais de 100 mil pessoas na Tailândia e 1.500 famílias em Oddar Meanchey destacam o custo humano imediato do conflito. O fechamento de todas as passagens de fronteira e a evacuação de comunidades próximas agravam a crise, afetando o comércio e o turismo, setores cruciais para ambas as economias. A acusação cambojana de que a Tailândia usou munições de fragmentação, proibidas internacionalmente, eleva a gravidade do conflito e pode levar a investigações por crimes de guerra.
2. Tensões Diplomáticas e Papel da ASEAN: A ruptura de relações diplomáticas, com a expulsão de embaixadores e o fechamento de embaixadas, indica um colapso da confiança mútua. A Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), presidida pela Malásia, enfrenta um teste crítico. Apesar dos apelos de Anwar Ibrahim, primeiro-ministro malaio, por diálogo e mediação, a relutância de ambos os lados em cessar hostilidades antes de negociações sugere que a ASEAN tem influência limitada para conter conflitos entre seus membros. A ausência de uma intervenção robusta da organização reforça críticas sobre sua ineficácia em resolver disputas regionais.
3. Nacionalismo e Política Interna: No Camboja, Hun Sen, ex-primeiro-ministro e atual presidente do Senado, parece capitalizar o conflito para fortalecer o nacionalismo e consolidar o poder de seu filho, Hun Manet, que enfrenta desafios para estabelecer uma base política independente. Na Tailândia, a crise intensifica a instabilidade política doméstica, com a suspensão da primeira-ministra Paetongtarn Shinawatra devido a uma conversa telefônica vazada com Hun Sen, na qual ela criticou o Exército tailandês. Esse incidente, aliado à possibilidade de um golpe militar, como sugerido por analistas, evidencia como disputas externas podem exacerbar crises internas.
4. Influência de Potências Externas: O conflito abre espaço para a China, principal parceiro comercial de ambos os países, explorar uma oportunidade diplomática. Pequim, que tem aumentado sua influência no Sudeste Asiático, pode se posicionar como mediadora ou reforçar laços econômicos para ampliar sua presença na região, especialmente em um momento de desconfiança em relação aos EUA. A menção a minas de fabricação russa, embora não confirmada, também levanta questões sobre a possível circulação de armamentos russos na região, o que poderia atrair atenção de potências ocidentais.
Perspectiva Realista
Sob a lente do realismo ofensivo, o conflito reflecte a busca por poder relativo e segurança em um sistema internacional anárquico. Tanto a Tailândia quanto o Camboja utilizam o nacionalismo e a retórica de soberania para justificar ações militares, visando fortalecer suas posições domésticas e regionais. A Tailândia, com maior capacidade militar, recorreu a ataques aéreos para afirmar sua superioridade, enquanto o Camboja, com um exército menos equipado, aposta em contra-ataques e denúncias internacionais para ganhar legitimidade. A disputa pelo templo é menos sobre o valor intrínseco do território e mais sobre a projeção de poder e a manutenção de narrativas nacionalistas que ressoam com suas populações.
No entanto, a escalada militar é arriscada. A Tailândia, com uma economia mais robusta, enfrenta perdas significativas no turismo e no comércio transfronteiriço, enquanto o Camboja, mais dependente de ajuda externa, pode sofrer com o isolamento regional. A incapacidade de ambos os lados de buscar uma solução negociada reflete a lógica realista de desconfiança mútua, onde a segurança de um é percebida como ameaça pelo outro.
Caminhos para a Resolução
Para evitar uma guerra mais ampla, como alertado pela Tailândia, algumas medidas são urgentes:
– Cessar-Fogo Imediato: A ASEAN, com apoio de atores neutros como a Malásia ou a Indonésia, deve pressionar por um cessar-fogo, garantindo a reabertura de canais diplomáticos.
– Mediação Internacional: O envolvimento da ONU, que discutirá o conflito no Conselho de Segurança, pode ajudar a estabelecer uma zona desmilitarizada temporária em torno do templo e outras áreas disputadas.
– Desminagem Conjunta: A controvérsia sobre as minas terrestres exige uma investigação independente, possivelmente conduzida pela Comissão Cambojana de Remoção de Minas (CMAC), para esclarecer sua origem e evitar novas acusações.
– Reforma da Governança Regional: A ASEAN precisa desenvolver mecanismos mais eficazes para resolver disputas territoriais, aprendendo com casos anteriores, como o conflito de Preah Vihear em 2011.
Conclusão
O conflito entre Camboja e Tailândia em torno do templo Prasat Ta Muen Thom é um lembrete das tensões latentes no Sudeste Asiático, onde legados coloniais, nacionalismo e fragilidades institucionais continuam a alimentar disputas. Embora o reconhecimento unilateral de territórios, como no caso da Palestina por Macron, não seja diretamente aplicável aqui, a comunidade internacional deve aprender com a necessidade de ações concretas para sustentar gestos diplomáticos. Sem mediação eficaz e desescalada militar, o conflito ameaça não apenas a estabilidade de ambos os países, mas também a credibilidade da ASEAN como bloco regional. A história mostra que disputas fronteiriças, quando alimentadas por nacionalismo, podem ter consequências duradouras, e cabe aos líderes de Camboja e Tailândia priorizar a paz em vez da escalada.