Crônica
A coragem de cair – Lições da água para a vida angolana

A água não pede licença para cair.
Ela simplesmente se entrega à gravidade, como o Kalandula se entrega à força da terra, um pacto ancestral e inegociável com o chão angolano. Deste abismo verde e rochoso, onde o rio Lucala despenca com toda a sua majestade, a queda é uma epopeia líquida, um poema de força bruta e beleza serena. Aqui, onde a terra se parte para dar passagem, a vida não tem pressa, mas tem um destino.
Olho para a cascata e sinto o estrondo nas entranhas. Não é apenas som; é uma vibração que percorre o peito, uma massagem violenta que diz: “Tu és pequeno, homem do planalto e da savana.” A névoa que sobe do encontro furioso da água com o lago é o hálito deste gigante de pedra, um suspiro fresco que molha o rosto, refresca a alma e lembra o sopro do vento do Namibe. Ali, onde o rio se torna catarata, o tempo deixa de ser uma linha recta. Ele curva-se, fragmenta-se em milhões de gotas que cintilam ao sol equatorial antes de se perderem na vastidão escura lá em baixo.
O rio, antes de se precipitar, era uma promessa silenciosa, um fluxo contínuo sobre pedras lisas, como as águas calmas do Kwanza que cortam a planície. Mas é na sua queda que ele encontra a sua verdadeira voz, o seu propósito dramático. É o momento de maior entrega, de maior vulnerabilidade, onde a água deixa de ser um corpo para se tornar um espírito de espuma e movimento. Ela não lamenta a perda do que foi; celebra o que está a ser.
E lá embaixo, o lago negro e profundo acolhe tudo, tal como a grande baía do Lobito recebe as ondas do Atlântico. A fúria da queda dissolve-se numa quietude que assusta e apazigua. É o fim de uma jornada, mas o início de outra, pois esta água, que agora descansa na sombra, será levada por outras correntes, evaporará sob o sol angolano e voltará a cair, um dia, noutro lugar.
Este espectáculo da natureza é um espelho para a nossa própria existência. A vida é um rio que flui por paisagens desconhecidas, das savanas da Huíla às matas do Maiombe, enfrenta os seus precipícios e, na queda, encontra a sua mais pura expressão. Não nos perdemos na queda, mas sim no medo dela. O que importa não é a calma do lago, nem a serenidade do rio, mas a coragem de nos atirarmos no abismo, confiando que, mesmo na turbulência, encontraremos a nossa força e a nossa voz.
A vida, como a água que corre pelos rios de Angola, é um fluxo constante, uma dança entre a quietude e o caos, entre o que se é e o que se torna. E o grande desafio é apenas este: ter a coragem de cair, para depois poder, finalmente, descansar na calma.