Opinião
Bilhete de Identidade: instrumento de cidadania ou de exclusão?
Introdução: A Identidade como Chave da Democracia
Num continente em constante busca pela consolidação democrática e pelo reforço da cidadania, o Bilhete de Identidade (BI) assume um papel que ultrapassa a mera função burocrática. Em contextos como o da África Austral, o BI representa a chave de acesso ao reconhecimento institucional do cidadão e, por conseguinte, à justiça, ao voto, ao emprego formal, à educação, aos serviços de saúde e à protecção social.
A sua função enquanto documento de base para o exercício dos direitos políticos e civis exige que seja universal, acessível, duradouro e protegido por políticas públicas eficazes. O BI representa a prova legal da existência do indivíduo e constitui o pilar essencial da cidadania moderna.
1. O Valor Político do Bilhete de Identidade: Identidade, Cidadania e Representatividade
O conceito de cidadania, segundo Norberto Bobbio (1992), assenta nos direitos civis, pois é através deles que os demais direitos se realizam. A identidade civil reconhecida pelo Estado é, assim, o ponto de partida da participação política.
Nos países da África Austral, como Angola, Namíbia, Zâmbia, Moçambique e Zimbabué, o BI é o documento primário para a identificação dos eleitores. Em Angola, particularmente, o recenseamento eleitoral oficioso tem como base os dados constantes dos BIs emitidos, conforme a Lei n.º 8/21, de 29 de Março. Este modelo permite reduzir fraudes, aumentar a eficiência e automatizar o processo eleitoral.
2. A Coabitação entre o Sistema de Identificação Civil e o Sistema Eleitoral
A coabitação entre os sistemas civil e eleitoral, quando bem estruturada, melhora a transparência e a confiança nos processos democráticos. Como defende Samuel Huntington (1991), “a legitimidade de qualquer democracia depende da confiança no processo pelo qual os governantes são escolhidos”.
Países como a Namíbia e Moçambique já utilizam cartões de eleitor baseados em dados biométricos recolhidos através do BI. Esta integração permite a construção de uma democracia mais limpa, mais participativa e mais legítima.
3. As Barreiras Reais de Acesso ao Bilhete de Identidade
Apesar da sua importância, o acesso ao BI continua a ser um desafio estrutural na África Austral. Entre as principais barreiras destacam-se:
a) Infra-estruturas limitadas: A concentração dos Postos de Identificação nas áreas urbanas limita o acesso das populações nas zonas rurais e remotas.
b) Custos económicos e sociais: A emissão ou renovação do BI envolve custos financeiros e tempo de espera, que dificultam o processo, sobretudo para os mais desfavorecidos.
c) Sub-registo civil: A inexistência de registos de nascimento impede o acesso ao BI e, por consequência, à cidadania formal.
d) Burocracia e morosidade: A lentidão dos procedimentos, a exigência de documentação adicional e a ausência de digitalização agravam a exclusão.
4. A Injustiça da Caducidade: Quando o Direito Expira
Outro entrave à cidadania plena é a validade limitada do BI. Em Angola, o documento expira entre 5 e 10 anos, o que significa que um cidadão pode ver-se impedido de exercer os seus direitos por razões meramente administrativas. Esta realidade afecta particularmente os idosos, as pessoas com deficiência e as populações de difícil acesso, que muitas vezes não possuem meios para renovar o documento.
5. A Experiência Internacional: BIs sem Caducidade
Vários países adoptaram o modelo de Bilhete de Identidade vitalício, reconhecendo que a identidade de uma pessoa não se altera ao longo do tempo, excepto por motivos excepcionais. Exemplos relevantes incluem:
Itália: Documento vitalício para maiores de 70 anos;
Uruguai e Paraguai: Documentos de identidade permanentes;
África do Sul: O Smart ID Card não tem data de validade;
Argentina: O DNI é aceite indefinidamente, salvo pedido de actualização pelo cidadão.
Estas experiências demonstram que é possível conciliar dignidade, inclusão e eficiência administrativa.
6. A Responsabilidade do Estado e do Cidadão: Um Compromisso de Duas Vias
A cidadania constrói-se sobre uma relação equilibrada entre direitos e deveres. No caso da identificação civil, essa relação exige um esforço conjunto entre o Estado — responsável por garantir o acesso universal ao BI — e o cidadão — responsável por levantar, conservar e renovar o seu documento.
6.1. O Papel do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos
O Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos tem como missão assegurar a identificação do cidadão e o registo dos seus dados no Arquivo Nacional de Identificação Civil e Criminal, que serve de suporte ao funcionamento de diversos sectores do Estado, como a Justiça, Segurança, Saúde, Educação, Finanças e Eleições.
O não levantamento do BI compromete a actualização deste arquivo, gera congestionamento nos postos e representa desperdício de recursos públicos.
6.2. O Acto de Abandono: 90 Dias sem Levantamento
O cidadão deve levantar o seu BI até 15 dias úteis após a sua emissão. Decorrido o prazo de 90 dias sem levantamento, o documento deve ser considerado abandonado e, por consequência, remetido ao arquivo como extraviado.
A partir deste momento, a emissão de uma nova via deverá seguir os trâmites da segunda via por extravio, com a devida justificação.
6.3. Taxa de Segunda Via: Responsabilidade sem Penalização Excessiva
Para garantir justiça administrativa, propõe-se que o pagamento da segunda via, nos casos de abandono, seja feito apenas com base na taxa de custo operacional do BI, sem aplicação de penalidades ou agravamentos. Assim, evita-se excluir os cidadãos mais vulneráveis, ao mesmo tempo que se responsabiliza o utente pelo não levantamento do documento.
6.4. O BI como Acto de Cidadania Consciente
O cidadão deve reconhecer que o levantamento e conservação do BI são gestos simples, mas de elevado valor cívico. Ter um BI válido é não apenas um direito, mas também uma forma de participar plenamente na vida nacional.
6.5. Reforçar a Cultura de Identificação Responsável
Para que se consolide uma cultura de cidadania responsável, é necessário:
Desenvolver campanhas de educação cívica sobre o valor do BI;
Criar brigadas móveis de emissão e renovação nas zonas rurais;
Utilizar tecnologia digital para alertar os cidadãos sobre a prontidão dos seus documentos;
Promover a interligação entre o BI e outros serviços públicos, como saúde, educação e segurança social.
7. Cidadania Documentada é Cidadania Protegida
Como afirma Amartya Sen (2000), “não há liberdade política efectiva sem os meios materiais para exercê-la”. O acesso ao BI é um desses meios. Sem ele, o cidadão não vota, não se regista, não herda, não participa nem reclama os seus direitos.
Urge, por isso, uma abordagem integrada que combine:
Emissão gratuita e regular de BIs;
Políticas de inclusão civil para todos;
Adopção progressiva de BIs sem prazo de validade;
E responsabilização equilibrada dos cidadãos.
Conclusão: Do Documento ao Direito
O Bilhete de Identidade não é apenas um cartão plastificado com dados pessoais. Ele é a materialização jurídica da cidadania. A sua ausência, morosidade, caducidade ou abandono transforma-o num mecanismo de exclusão silenciosa.
O Estado deve criar as condições para que nenhum cidadão fique para trás. E o cidadão deve cumprir com o seu dever de se identificar, levantar e conservar o seu documento.
Sou cidadão. Meu Bilhete, minha Identidade. Minha Identidade, meu Direito.
