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Análise

Sociedade civil em Angola: força moral ou decoração democrática?

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A democracia em Angola vive um tempo de provação. A aparente normalidade institucional contrasta com a fragilidade social, a insatisfação popular e a desconfiança generalizada nas estruturas do Estado. A distância entre governantes e governados cresceu, e a promessa de uma governação participativa e justa continua por cumprir.

É neste contexto que se impõe um debate sério sobre as formas de financiamento público e social, o papel da sociedade civil e as reformas estruturais necessárias para consolidar a estabilidade democrática.

Como recorda Paulo Bonavides (2001), “a democracia não é uma dádiva do poder, mas uma conquista permanente da cidadania”. Assim, Angola só será verdadeiramente democrática quando o seu povo for protagonista do processo de decisão e não mero espectador das promessas políticas.

1. A Sociedade Civil como Pilar da Democracia Participativa

A sociedade civil, entendida como o espaço livre entre o Estado e o mercado, é o alicerce sobre o qual repousam as democracias modernas. Em Angola, ela emerge como força moral e social capaz de pressionar o poder público, fiscalizar o uso dos recursos e mobilizar consciências colectivas.

No entanto, a sua actuação tem sido limitada por entraves burocráticos, dependência financeira e uma cultura política centralizadora. A democracia participativa, conceito defendido por Boaventura de Sousa Santos (2005), pressupõe “a ampliação dos espaços públicos não estatais onde o cidadão exerce poder deliberativo e fiscalizador”. Em outras palavras, o Estado deve deixar de temer a sociedade civil e começar a vê-la como parceira estratégica da governação.

A experiência brasileira é ilustrativa. Com a criação dos conselhos de políticas públicas e do orçamento participativo, o Brasil conseguiu dar ao cidadão um papel directo nas decisões governamentais, reduzindo a distância entre o poder político e as comunidades. Angola poderia seguir um caminho semelhante, promovendo a institucionalização da participação cívica local e fortalecendo as organizações comunitárias nas autarquias.

2. O Financiamento Democrático: Ética, Transparência e Sustentabilidade

O financiamento democrático é o motor invisível da estabilidade política. Sem fontes limpas e controladas de financiamento público, privado e comunitário, a democracia degrada-se e a corrupção torna-se endémica.

Segundo Norberto Bobbio (1986), “a essência da democracia reside na visibilidade do poder e na controlabilidade dos actos públicos”. Em Angola, esta visibilidade ainda é insuficiente. O Orçamento Geral do Estado carece de mecanismos de fiscalização cidadã, e os relatórios do Tribunal de Contas raramente têm consequências práticas sobre os infractores.

O financiamento dos partidos políticos é outro ponto crítico. Quando os recursos públicos são distribuídos de forma desigual, cria-se uma democracia formalmente plural, mas materialmente concentrada. A lição de Robert Dahl (1971) é clara: a poliarquia só se mantém quando há competição efectiva e igualdade de oportunidades políticas. O actual modelo angolano, dependente da vontade do poder central, precisa de ser reformulado para garantir equidade e prestação de contas.

No campo económico, Amartya Sen (1999) lembra que “não há desenvolvimento sem liberdade, e não há liberdade sem responsabilidade financeira”. O uso ético dos recursos públicos é, portanto, condição essencial para que a democracia se torne instrumento de emancipação e não de dominação.

É fundamental sublinhar que o financiamento das organizações da sociedade civil deve ser proporcional ao dos partidos políticos, de modo a assegurar equilíbrio na consolidação democrática. Contudo, esse financiamento deve ser feito com base na transparência, garantindo acesso igual e fiscalização rigorosa para todos os beneficiários.

3. As Reformas Estruturais e o Desafio do Estado Eficiente

O Estado angolano precisa de uma reforma administrativa profunda. A herança centralizadora, a burocracia pesada e a baixa produtividade dos serviços públicos travam o progresso e alimentam o descontentamento social.

Inspirando-se nas reformas gerenciais propostas por Luiz Carlos Bresser-Pereira (1995) no Brasil, Angola poderia avançar para um modelo de governação por resultados, em que o foco deixa de ser o controlo político e passa a ser o desempenho, a eficiência e o impacto social das políticas públicas.

Mas nenhuma reforma será eficaz sem vontade política. Como observa Habermas (1992), “a legitimidade política nasce do diálogo racional e inclusivo entre Estado e sociedade”. Em Angola, o diálogo é ainda frágil e condicionado. O governo deve abrir canais de comunicação real com a sociedade civil, os municípios e as universidades, de modo a construir políticas públicas partilhadas e sustentáveis.

4. Financiamento Internacional e a Defesa da Soberania Nacional

A cooperação internacional é uma fonte legítima de apoio à democracia angolana, mas precisa de ser gerida com cautela. A dependência excessiva de doadores externos pode comprometer a soberania e limitar a capacidade de decisão interna.

Joseph Stiglitz (2002) defende que “a globalização só é justa quando fortalece as instituições nacionais e não as substitui”. Assim, Angola deve utilizar o financiamento internacional como ferramenta de capacitação técnica e não como muleta económica.

A criação de um Fundo Nacional de Governança Democrática, alimentado por doações externas e receitas nacionais, sob gestão conjunta do Estado e da sociedade civil, poderia assegurar o equilíbrio entre apoio internacional e autonomia nacional.

5. A Educação Financeira e a Cultura de Prestação de Contas

Uma democracia sólida exige cidadãos informados. A ausência de educação cívica e financeira perpetua o conformismo e a vulnerabilidade social. Quando o povo desconhece o destino dos recursos públicos, torna-se cúmplice involuntário da má governação.

Como defende Milton Friedman (1962), “só um cidadão que compreende o funcionamento da economia é capaz de defender a sua liberdade”. A inclusão da educação fiscal e orçamental nos currículos escolares e universitários é urgente, pois forma cidadãos conscientes, capazes de exigir transparência e de fiscalizar a execução orçamental.

6. A Dimensão Ética e o Dever Moral da Democracia

Mais do que uma questão institucional, a crise democrática em Angola é também uma crise moral. O nepotismo, o clientelismo e o desvio de fundos corroem o sentido ético da governação.

Max Weber (1919) já advertia que “a política deve ser conduzida com ética da responsabilidade, não apenas com ética da convicção”. A sociedade civil deve assumir o papel de vigia moral da nação, denunciando a corrupção e promovendo uma cultura de integridade. O Estado, por seu lado, precisa de compreender que a crítica é um acto de patriotismo, não de oposição.

7. O Caminho Angolano: Cidadania, Transparência e Esperança

Angola está num ponto de inflexão. Ou aprofunda as suas reformas e consolida uma democracia participativa, ou corre o risco de perpetuar um sistema fechado, concentrado e desigual.

A estabilidade democrática não é produto do acaso, mas do equilíbrio entre financiamento ético, instituições fortes e cidadania activa.

Como ensinou Alexis de Tocqueville (1835), “a democracia é uma obra permanente de educação moral e política”. O futuro angolano dependerá da coragem dos seus líderes, mas também da vigilância dos seus cidadãos.

O país precisa de uma nova aliança entre Estado e sociedade, uma aliança pela transparência, pela justiça e pelo desenvolvimento inclusivo. Sem isso, a democracia continuará a ser uma promessa adiada.

8. Conclusão: O Dever de Reconstruir o Estado Democrático

O desafio de Angola não é apenas político, é civilizacional. A sociedade civil deve abandonar a passividade e assumir o papel de motor do progresso; o Estado deve abrir-se ao escrutínio público; e as elites devem compreender que o poder só é legítimo quando é serviço.

Como bem afirmou Boaventura de Sousa Santos, “a democracia começa onde termina o medo”. Angola só será verdadeiramente livre quando o cidadão comum deixar de temer o poder e o poder passar a temer a consciência do cidadão.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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