Análise
Segurança Pública em Angola: centralização demais, protecção de menos?
A segurança pública é, por excelência, um dos serviços essenciais que o Estado deve garantir a todos os cidadãos, independentemente da sua localização geográfica ou condição social. É sobre a segurança que se edificam a confiança institucional, o exercício pleno da cidadania, a atracção de investimentos e o florescimento da vida urbana. Em Angola, no entanto, os desafios relacionados com a segurança nas zonas urbanas e rurais intensificaram-se nas últimas décadas, como consequência do crescimento desordenado das cidades, desigualdades territoriais, urbanização acelerada e fragilidade das infraestruturas públicas.
Embora a Constituição da República de Angola consagre a segurança como responsabilidade do Estado, observa-se, na prática, uma centralização excessiva da gestão da ordem pública. Esta centralização limita a resposta a problemas específicos em contextos locais, gera sobrecarga nos comandos provinciais da Polícia Nacional e, sobretudo, distancia o cidadão dos mecanismos de prevenção e actuação imediata.
O actual contexto da reforma do Estado, com a nova Divisão Político-Administrativa, a institucionalização da Guarda Municipal e o fortalecimento da descentralização financeira, oferece uma oportunidade ímpar para redesenhar a arquitectura da segurança pública, devolvendo aos municípios um papel activo nesta missão.
Neste cenário, propõe-se um modelo de segurança territorializada, baseado em três pilares estratégicos:
1. Implantação de Esquadras por Quilómetro Quadrado (EPKQ);
2. Desenvolvimento de uma Estratégia Municipal de Segurança Electrónica;
3. Implementação de formação obrigatória para os gestores municipais em segurança pública.
1. Porquê Municipalizar a Segurança Pública?
A municipalização da segurança pública representa uma evolução lógica da governação de proximidade. Quando os problemas de segurança são tratados à distância – nos comandos centrais ou provinciais – perde-se a capacidade de actuar com rapidez, sensibilidade cultural e conhecimento do território. A experiência internacional e os estudos de políticas públicas demonstram que a descentralização acompanhada de responsabilização gera melhores resultados nos serviços prestados à população (Ostrom, 1990; Pierre & Peters, 2000).
Angola enfrenta desafios concretos como:
A criminalidade juvenil e o surgimento de gangues em bairros periféricos;
O aumento dos furtos e assaltos em zonas urbanas de rápido crescimento;
A insegurança nos mercados informais e nos transportes públicos;
A fragilidade do policiamento em zonas fronteiriças e rurais isoladas;
A falta de articulação entre segurança, planeamento urbano e participação comunitária.
A resposta a estes problemas exige uma abordagem integrada, próxima das comunidades, apoiada em recursos humanos capacitados e tecnologia adequada. A municipalização da segurança não substitui o papel do Estado central, mas complementa-o, permitindo ao poder local antecipar, intervir e colaborar na preservação da ordem e tranquilidade públicas.
2. Esquadras por Quilómetro Quadrado (EPKQ)
O modelo das Esquadras por Quilómetro Quadrado é uma proposta ousada, mas necessária, para garantir cobertura efectiva dos serviços policiais nos centros urbanos. Parte-se do princípio de que nenhum cidadão deve percorrer mais de um quilómetro para aceder a uma unidade policial básica, especialmente em zonas com mais de 5.000 habitantes por quilómetro quadrado.
Cada EPKQ seria composta por:
15 a 20 agentes por turno, com formação em policiamento comunitário;
1 a 2 viaturas ligeiras e motopatrulhas para deslocações rápidas;
Drones para vigilância aérea e apoio a operações de busca;
Terminais digitais interligados ao Centro Municipal de Segurança.
As EPKQ devem funcionar não apenas como pontos de repressão, mas como centros de escuta activa, mediação de conflitos, apoio às vítimas, articulação com os líderes locais, escolas, igrejas e associações juvenis.
Nas zonas rurais, onde a dispersão populacional inviabiliza a implantação de EPKQ fixas, propõe-se a criação de postos móveis de segurança comunitária, com base em veículos adaptados e guardas treinados, apoiados pelas autoridades tradicionais e conselhos de sobas.
3. Integração Urbanística das EPKQ
A presença da segurança no território deve ser visível, integrada e estratégica. A ausência de esquadras e de policiamento em bairros urbanos e novas centralidades é muitas vezes resultado de falhas no planeamento urbano.
Assim, é imprescindível que as EPKQ sejam incluídas nos Planos Directores Municipais (PDM), nos Planos Urbanos de Desenvolvimento (PUD) e nas propostas de novas urbanizações. Os terrenos para esquadras devem estar próximos de escolas, mercados, paragens de táxi, centros de saúde e zonas residenciais.
O conceito de CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design) ensina-nos que o urbanismo pode prevenir a criminalidade se for bem desenhado: iluminação adequada, visibilidade, uso misto dos espaços e circulação fluida contribuem para aumentar a segurança percebida e real (Jeffery, 1971; UN-Habitat, 2020).
4. Estratégia Municipal de Segurança Electrónica
Complementar ao policiamento físico está a segurança digital e tecnológica, cada vez mais indispensável na gestão moderna das cidades. A proposta é desenvolver, em cada município, uma Rede Municipal de Segurança Electrónica, articulando:
Câmaras de vigilância com inteligência artificial instaladas em pontos estratégicos;
Sensores de ruído e vibração para detecção de tiros, vandalismo ou tumultos;
Sistemas de monitoramento nos transportes públicos, mercados e praças;
Aplicações móveis para denúncias, pedidos de ajuda e partilha de localização.
Esta rede deverá ser construída com a participação activa do sector privado e das instituições públicas. Cada empresa, condomínio, escola ou repartição poderá integrar-se à rede, com incentivos como redução de taxas, apoios técnicos e certificação.
A plataforma digital municipal recolherá, armazenará e processará os dados de forma segura, e o acesso será partilhado com os órgãos municipais de segurança, garantindo interoperabilidade com a Polícia Nacional, Bombeiros e Protecção Civil.
A experiência de cidades como Medellín (Colômbia), Cidade do Cabo (África do Sul) e Amsterdão (Países Baixos) mostra que a inteligência urbana baseada em dados georreferenciados é uma poderosa aliada na prevenção de crimes e gestão de emergências (Goldsmith & Crawford, 2021).
5. Formação Obrigatória dos Gestores Municipais
Nenhuma estratégia de segurança será eficaz sem quadros capacitados. A formação obrigatória dos gestores municipais surge como condição indispensável para a boa implementação do novo modelo. Propõe-se a criação da Academia Nacional de Segurança Pública Local (ANASPL), dedicada à formação, certificação e actualização dos quadros executivos das autarquias.
Os conteúdos formativos incluirão:
Noções de direito penal e administrativo aplicado à segurança local;
Gestão de riscos e desastres naturais ou provocados;
Leitura e interpretação de indicadores de criminalidade;
Planeamento urbano com enfoque preventivo;
Tecnologias de segurança digital e sistemas de informação geográfica;
Mediação de conflitos e gestão comunitária de crises.
A certificação ANASPL será condição legal para nomeação em cargos de responsabilidade no executivo municipal, assegurando que todos os responsáveis pela segurança local actuem com conhecimento técnico, visão estratégica e responsabilidade institucional.
6. Riscos e Estratégias de Mitigação
Embora promissora, a municipalização da segurança envolve riscos. A politização das forças municipais, a fragilidade orçamental, os abusos de poder ou a fragmentação institucional podem comprometer a eficácia do modelo.
Para mitigar esses riscos, recomenda-se:
Criação de Conselhos Comunitários de Segurança, com participação de associações, igrejas, universidades, empresas e líderes locais;
Estabelecimento de Fundos Municipais de Segurança, com receitas próprias (taxas, multas, IPU) e transferências específicas do Estado;
Regulamentação do uso de câmaras corporais (bodycams) e auditorias externas regulares;
Protocolos de interoperabilidade entre o Ministério do Interior, o Ministério da Administração do Território e os municípios.
7. Caminhos de Implementação
A execução deste novo modelo deve ser gradual, mas firme. Propõe-se:
Aprovação da Lei-Quadro da Segurança Pública Municipal;
Criação da Academia Nacional de Segurança Pública Local (ANASPL);
Definição de municípios-piloto: Luanda, Lubango, Huambo, Benguela, Cacuaco e Viana;
Construção de Centros Municipais Integrados de Segurança;
Lançamento da Rede Nacional de Segurança Electrónica Municipal;
Aplicação de orçamentos participativos para escolha de prioridades de segurança.
Finalmente, é importante referir que a municipalização da segurança pública representa uma resposta estratégica aos novos desafios urbanos, à crescente complexidade dos territórios e à necessidade de fortalecer a presença do Estado nos bairros, aldeias e comunas. Com as Esquadras por Quilómetro Quadrado, o uso inteligente da tecnologia e a qualificação dos gestores locais, Angola pode iniciar uma viragem histórica na forma como protege os seus cidadãos.
Este modelo é inclusivo, participativo, territorializado e preventivo. Coloca a segurança não como fim, mas como meio para o bem-estar, a confiança social e o desenvolvimento sustentável. O município torna-se, assim, o primeiro garante da ordem, da justiça e da paz no quotidiano dos angolanos.