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Análise

Savimbi, Holden e Neto: a medalha que divide a Nação

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1. O Anúncio Histórico e o Espírito da Reconciliação

O Presidente João Lourenço anunciou esta quarta-feira, na Assembleia Nacional, durante a sua mensagem sobre o Estado da Nação, que Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi serão condecorados. Os três líderes, protagonistas da assinatura dos Acordos de Alvor em 1975, serão distinguidos com a medalha comemorativa dos 50 anos da Independência Nacional.

Segundo João Lourenço, “esta homenagem insere-se no espírito do perdão, da paz e da reconciliação nacional”. Acrescentou ainda: “Vamos estender este reconhecimento nacional aos signatários dos Acordos de Alvor, atribuindo-lhes a medalha comemorativa dos 50 anos da Independência Nacional. Não temos dúvidas de que este gesto, somado ao trabalho de dignificação das vítimas dos conflitos políticos e de consolo para os seus familiares, é um contributo indelével para a reconciliação nacional.”

Este anúncio é histórico não apenas pela simbologia das figuras homenageadas, mas também pelo momento político em que ocorre. Ao longo de décadas, os nomes de Jonas Savimbi e Holden Roberto foram associados ao conflito e à instabilidade, enquadrados como antíteses da narrativa heroica do MPLA. Hoje, o gesto de João Lourenço representa uma ruptura com a lógica do antagonismo histórico e uma abertura à ideia de memória partilhada.

A condecoração ocorre no contexto do cinquentenário da independência, reforçando a mensagem de que a soberania de Angola não se cumpre apenas no acto de libertação, mas na capacidade de reconciliar os filhos da Nação, independentemente das divergências ideológicas e das tragédias passadas. É um convite à reflexão sobre a própria identidade nacional e sobre a importância de olhar para o passado com maturidade, sem rancores que envenenem o presente e comprometam o futuro.

2. O Perdão como Política de Estado e Instrumento de Paz

O gesto do Governo do MPLA de incluir antigos adversários no rol de homenageados é um acto político de elevada simbolismo e profundidade ética. Segundo o cientista político Benedito Kapuka (2022), “um passo simbólico para o encerramento definitivo do ciclo de hostilidades narrativas que ainda dividem a memória nacional” representa mais do que reconhecimento histórico; constitui um instrumento estratégico de consolidação da paz e de legitimidade política.

O filósofo e teólogo Desmond Tutu (1999), que presidiu à Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, afirmava que “sem perdão, não há futuro; mas sem confissão, não há perdão”. Esta reflexão encontra paralelo no gesto de João Lourenço: reconhecer publicamente os protagonistas de um passado conturbado é assumir o papel do Estado como mediador e reconciliador, criando condições para que a sociedade avance sem ser prisioneira do passado.

Paul Ricoeur (2000) complementa, lembrando que o perdão político “não apaga o mal, mas reinscreve-o num horizonte de sentido que permite ao futuro não ser refém do passado”. Em Angola, a decisão de condecorar os signatários dos Acordos de Alvor é precisamente a tentativa de reinserir memórias divergentes num espaço de sentido comum, onde a história é reconhecida em toda a sua complexidade, e não apenas pelo prisma de uma única narrativa vencedora.

O acto não elimina as responsabilidades históricas de cada figura homenageada, mas cria uma nova matriz de interpretação, na qual o perdão se torna uma ferramenta de construção de paz e não um mero gesto simbólico. Segundo Hannah Arendt (1963), o perdão político é a condição necessária para que a acção humana seja libertadora e transformadora. Sem esta capacidade, o passado permanece como um fardo que limita a maturidade do Estado e da sociedade.

3. A Perspectiva dos Militantes e Ex-Militares do MPLA

Entre os militantes e ex-combatentes do MPLA, o gesto suscita sentimentos ambivalentes e profundos. Muitos dos que participaram activamente das frentes de combate carregam cicatrizes físicas e emocionais. Para eles, a condecoração de Jonas Savimbi e Holden Roberto, lado a lado com Agostinho Neto, pode parecer um acto de relativização do sacrifício feito pelos combatentes do MPLA, mas também é um sinal de grandeza e maturidade política.

O académico e político António Pitra Neto (2019) observa que “a reconciliação nacional só é verdadeira quando os heróis e os vencidos encontram o mesmo altar da memória colectiva”. Isto implica que a memória da guerra deve ser inclusiva, reconhecendo que a construção da independência foi feita por múltiplos actores, nem todos alinhados com a narrativa dominante.

O ex-militar reformado José Caetano Manuel afirma que “o perdão é uma vitória mais difícil do que a guerra, porque exige coragem para reconhecer o outro como parte de nós”. Esta afirmação evidencia que a reconciliação é um processo longo e que não se esgota com um gesto simbólico ou uma medalha. O desafio está em transformar o perdão em consciência colectiva e prática social duradoura.

4. Memória, Poder e Reposicionamento do Estado

Segundo o politólogo Carlos Pacheco (2021), “os regimes políticos, ao amadurecerem, tendem a reformular a sua narrativa fundacional para incluir aqueles que outrora excluíram”. Em Angola, a decisão de João Lourenço representa esta maturidade política. O MPLA, ao incluir antigos adversários na narrativa oficial da independência, reconhece a pluralidade histórica como um valor estratégico de unidade nacional.

O gesto fortalece a legitimidade do Estado perante a sociedade e também no plano internacional. Como sublinha Achille Mbembe (2016), “as nações pós-coloniais só encontram paz quando decidem partilhar o peso da memória e do esquecimento”. Angola, ao homenagear todos os signatários dos Acordos de Alvor, cumpre este princípio, transformando o passado em um activo de construção da identidade nacional, em vez de uma arma de divisão política.

A condecoração transmite ainda uma mensagem pedagógica às gerações mais jovens: a Nação é maior do que as divergências ideológicas, e a construção do futuro exige reconhecimento do passado com equidade e justiça.

5. A Reconciliação como Projecto de Futuro

O perdão, enquanto acto político, não é um ponto final, mas um ponto de partida. Num país onde a juventude representa mais de 60% da população, ensinar a importância do diálogo, da tolerância e da memória partilhada é um investimento estratégico.

O filósofo Jürgen Habermas (2001) enfatiza a “razão comunicativa” como base da convivência democrática. Ao homenagear figuras de diferentes movimentos históricos, o Estado promove um diálogo simbólico, demonstrando que as diferenças políticas podem coexistir dentro de uma narrativa de unidade nacional.

O gesto também fortalece a imagem de Angola internacionalmente como uma nação que consegue enfrentar o passado com responsabilidade e sabedoria, enviando uma mensagem de que a paz e a reconciliação são compatíveis com o exercício do poder e a afirmação da soberania.

6. Dimensão Ética e Espiritual do Perdão

O perdão em Angola tem também uma dimensão espiritual e ética. Na tradição africana, reconciliar-se não significa esquecer, mas reintegrar os membros da comunidade que estiveram separados pelo conflito. O gesto do Presidente João Lourenço é, portanto, um acto de reintegração simbólica, onde os espíritos dos que tombaram na guerra civil encontram finalmente reconhecimento e dignidade.

O teólogo angolano Dom Afonso Nunes (2020) observa que “a reconciliação é o último estágio da libertação, porque não há liberdade plena enquanto persistirem rancores entre irmãos”. Homenagear os signatários dos Acordos de Alvor é, assim, um acto de fé no futuro da Nação, em que política, memória e espiritualidade se entrelaçam.

7. Conclusão: A Vitória do Perdão sobre a História

Ao condecorar Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi, o Governo do MPLA não apenas reescreve a história, mas proporciona um novo pacto moral com a população. O perdão transforma-se em instrumento de unidade, em símbolo de maturidade política e em base para a construção de uma sociedade mais justa.

Como disse Nelson Mandela (1994), “a grandeza de um líder mede-se pela sua capacidade de transformar inimigos em parceiros de construção”. Angola, ao reconhecer antigos adversários, mostra-se capaz de olhar para o passado sem rancor e de projetar um futuro de inclusão e paz.

O gesto de João Lourenço sela, assim, um compromisso histórico com a reconciliação, demonstrando que a verdadeira vitória não pertence aos que venceram a guerra, mas aos que escolheram a paz.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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