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Opinião

Reforma na Polícia Nacional ou injustiça institucional? Quando a Lei pesa sobre os agentes de autoridade

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“As instituições não devem apenas exigir disciplina. Devem inspirá-la pelo exemplo e pela justiça.”
— Boaventura de Sousa Santos

1. Um Debate Que Requer Mais do que Punição

A proposta de Lei do Regime Disciplinar da Polícia Nacional de Angola, actualmente em discussão na Assembleia Nacional, surge num momento crítico da história da segurança pública no país. À medida que se tenta modernizar o sector, introduzem-se reformas que, embora necessárias, não podem ser implementadas à margem do contexto humano em que operam os efectivos da corporação.

Entre os pontos mais controversos do diploma está a possibilidade de despromoção ou expulsão de agentes que se apresentem embriagados em serviço de forma reincidente. Embora o objectivo de preservar a disciplina e a imagem da instituição seja louvável, a proposta incorre numa grave omissão: ignora os determinantes sociais, psicológicos e profissionais que muitas vezes estão na origem de comportamentos desviantes.

Não se trata de defender a impunidade — mas de recusar uma visão disciplinar que desconsidera as condições concretas de vida e de trabalho dos polícias em Angola. Como adverte o sociólogo Robert Reiner (2010), “não há disciplina legítima onde não há justiça institucional.”

2. A Realidade Diária de Quem Veste a Farda

É urgente compreender, com empatia e rigor, o que significa ser polícia em Angola hoje. A maioria dos efectivos trabalha em condições marcadas pela carência material, desvalorização profissional e riscos permanentes. Há agentes que patrulham sem coletes à prova de bala, que trabalham em postos sem casas de banho, sem luz nem água, e que percorrem longas distâncias a pé por falta de meios de transporte operacionais.

Os salários são baixos e, em muitos casos, não acompanham o custo de vida urbano. As horas extraordinárias são mal compensadas, quando o são. Muitos agentes têm de fazer “biscates” para complementar o rendimento familiar. É neste cenário que surgem comportamentos de evasão emocional, como o consumo de álcool — não como vício, mas como reacção ao sofrimento, à frustração e à ausência de alternativas psicológicas e institucionais.

Hans Selye (1956), precursor dos estudos sobre o stress, lembra que o esgotamento físico e emocional prolongado pode alterar o comportamento humano de forma imprevisível. Como esperar equilíbrio emocional e lucidez plena de quem vive sob pressão permanente e em insegurança social?

3. O Alcoolismo é Doença, Não Crime

A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o alcoolismo como uma doença crónica de origem multifactorial, com fortes componentes emocionais e ambientais. Em ambientes de trabalho tóxicos ou negligenciados, a propensão ao abuso de álcool aumenta. A punição do agente por consumo reincidente de álcool, sem acesso prévio a tratamento ou assistência, constitui uma violação de princípios fundamentais de justiça, proporcionalidade e reabilitação.

Segundo Samuel Walker (2005), “um código disciplinar moderno não é só instrumento de punição, mas também de protecção e recuperação do efectivo em crise”. Ao expulsar o agente reincidente sem lhe oferecer tratamento, o Estado confirma o seu fracasso institucional em cuidar de quem o serve.

4. Onde Estão os Psicólogos da Polícia?

Não basta legislar sobre disciplina se não se investir na saúde mental dos efectivos. É imperativo que a nova lei venha acompanhada da criação de centros permanentes de apoio psicológico e acompanhamento psicoemocional, distribuídos por todo o território nacional. Esses centros devem oferecer escuta activa, terapia clínica, apoio psicossocial familiar, e até medidas de afastamento temporário para recuperação, com reintegração humanizada.

Nenhum efectivo deveria ser afastado de forma punitiva por problemas de saúde mental. “Expulsar um agente por alcoolismo sem tratamento prévio é como abandonar um soldado ferido no campo de batalha”, dizia o psiquiatra sul-africano Mamphela Ramphele.

5. O Silêncio Sindical Como Ferida Democrática

A nova proposta de lei peca também pela ausência de qualquer menção ao direito de organização sindical dos agentes e oficiais da Polícia Nacional. Ora, a Constituição da República de Angola, no seu artigo 33.º, garante a liberdade de associação sindical como direito fundamental de todos os trabalhadores.

Recusar esse direito aos polícias, sob o argumento de que compromete a disciplina, é uma falácia autoritária. Na verdade, como demonstra David Bayley (1998), “os sindicatos policiais, quando regulados, fortalecem o profissionalismo, promovem o diálogo institucional e diminuem o risco de motins e greves inorgânicas”.

A criação de um Sindicato Nacional dos Agentes e Oficiais da Polícia Nacional, incluindo agentes administrativos, não compromete a disciplina — fortalece o equilíbrio de poderes dentro da estrutura policial, oferecendo canais legítimos para reclamações, negociações salariais, propostas de reforma e defesa jurídica em caso de abusos.

6. Sem Salários Justos, Não Há Disciplina Durável

A manutenção da disciplina exige reconhecimento. Agentes mal pagos, sobrecarregados e emocionalmente desamparados tornam-se alvos fáceis de corrupção, desmotivação e vícios. A actual estrutura salarial da PN está desalinhada com o custo de vida, especialmente nas zonas urbanas. Como referia Abraham Maslow (1943), “um trabalhador com fome e medo não pode ser motivado apenas por códigos de conduta; é preciso garantir-lhe dignidade”.

É fundamental aprovar uma revisão da grelha salarial, estabelecer subsídios de risco actualizados, oferecer acesso gratuito a cuidados de saúde e apoio escolar para filhos de agentes, e criar mecanismos de incentivo por mérito, como habitação, bolsas de estudo e prémios por desempenho exemplar.

7. A Formação Contínua Não Pode Ser Opcional

Disciplinar não é apenas punir — é também educar e capacitar. Infelizmente, muitos efectivos da PN terminam a formação inicial e nunca mais são submetidos a qualquer tipo de actualização. Isso enfraquece a qualidade do serviço público, mina a motivação interna e acentua os desvios de conduta.

Paulo Freire (1970) afirmava que “formar é acto contínuo e libertador”. É imperativo que a nova lei estabeleça formação contínua obrigatória, com módulos sobre ética, direitos humanos, gestão de conflitos, comunicação comunitária, liderança emocional e inteligência artificial na segurança pública.

Sem isso, a disciplina torna-se uma imposição mecânica, e não uma convicção enraizada.

8. O Estado Não Pode Exigir o Que Não Dá

O Estado não pode continuar a exigir aos agentes da Polícia Nacional aquilo que não lhes proporciona: equilíbrio emocional, dignidade profissional, estabilidade familiar e oportunidade de crescimento. A autoridade nasce do exemplo e da justiça, não do medo nem da ameaça.

Punir sem cuidar, punir sem ouvir, punir sem prevenir — isso não é disciplina. É desumanização institucional. E um Estado que desumaniza os seus agentes, desumaniza também os cidadãos que eles juram proteger.

9. Conclusão: Pela Humanização e Dignidade da Polícia Nacional

Chegou a hora de Angola dar um passo firme em direcção a uma reforma humanista da segurança pública. A nova Lei do Regime Disciplinar deve ser aprovada, sim — mas com emendas substanciais que a tornem mais justa, preventiva, equilibrada e respeitadora da condição humana dos efectivos.

Não faltam referências de modelos alternativos e eficazes no continente africano e fora dele. Por exemplo, na África do Sul, a criação da IPID – Independent Police Investigative Directorate permite não apenas responsabilizar efectivos por má conduta, mas também garantir que estes tenham acesso a acompanhamento psicológico e apoio legal. As medidas disciplinares são acompanhadas por comissões de mediação interna e apoio emocional, reconhecendo que nem todo erro decorre de má-fé, mas muitas vezes da exaustão ou trauma acumulado.

No Botswana, a disciplina policial é exemplar, mas a chave do sucesso está na valorização institucional: os efectivos recebem formação contínua obrigatória, têm assistência médica gratuita, seguro de vida e acesso a programas de reconversão profissional após a reforma. O respeito pela farda nasce do respeito pelo ser humano que a enverga.

Na Noruega, as sanções disciplinares são sempre precedidas por um processo de escuta e reabilitação. Casos de alcoolismo são tratados em centros especializados com licença paga. A polícia dispõe de psicólogos internos em todas as esquadras principais, e o acompanhamento emocional é parte da rotina de trabalho.

Mesmo em países em desenvolvimento, como o Uruguai, a reforma policial passou por um processo participativo, onde os próprios agentes contribuíram com propostas de código de conduta, aumentando a adesão e o respeito pelo regime disciplinar. O policiamento comunitário e o apoio psíquico tornaram-se pilares da estrutura organizacional.

Estes exemplos demonstram que é possível construir disciplina com humanidade, autoridade com escuta, e firmeza com empatia.

Propõe-se, então, que a Lei Disciplinar da Polícia Nacional de Angola integre os seguintes pilares estruturantes:

1. Criação de centros de apoio psicológico e tratamento de dependências dentro da PN, com cobertura nacional.

2. Reconhecimento legal e institucional do sindicato policial, com regulação clara e objectiva, respeitando os princípios constitucionais.

3. Revisão da grelha salarial e implementação de subsídios de risco, prémios por mérito, e apoios sociais para os efectivos e suas famílias.

4. Formação contínua obrigatória, incluindo actualização em ética, direitos humanos, gestão de stress, novas tecnologias e liderança emocional.

5. Instituição de um órgão disciplinar autónomo, misto e imparcial, que garanta o contraditório, o direito à defesa e a proporcionalidade das sanções.

Como bem escreveu Zygmunt Bauman, “não há ordem verdadeira sem justiça, nem disciplina legítima sem dignidade”. A reforma disciplinar da Polícia Nacional de Angola não pode ser apenas um documento punitivo — deve ser um pacto de justiça organizacional, de reconstrução da autoridade pelo exemplo e de valorização de quem arrisca a vida em defesa da ordem pública.

Porque ser polícia em Angola não é fácil — e por isso mesmo, exige mais do que castigos. Exige respeito, estrutura, escuta, justiça e investimento humano real.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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1 Comentário

1 Comentário

  1. Faustino Manuel Candeia Carlos

    07/07/2025 em 2:32 pm

    Boa tarde correio da kianda

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