Crónica
Quando o amor vira levantamento sem cartão
Estava eu a apresentar o programa Capital Central da Rádio Correio da Kianda. Às seis horas, como sempre, entrou no ar a rubrica de interação com os ouvintes. O objectivo é simples: saber o que aconteceu no bairro nas últimas 24 horas. Entre tantas histórias contadas, duas chamaram-me atenção.
Era o ouvinte Aniel Moço, do bairro da Paz, município de Belas. A voz dele carregava frustração: “Mussungo, aqui no meu bairro as mulheres jovens e senhoras de idade passam o dia a jogar cartas e jogos de azar, a fumentar boatos. Ontem até entraram em pancadarias. Algumas são donas de casa, com esposos, não trabalham e nem plano de negócio têm nem que fosse vender rama e tomate no Kuakuanra. É triste.”
Logo a seguir, veio outra preocupação, desta vez do Benfica, junto ao cemitério. O ouvinte João de Almeida foi directo: “Aqui a prostituição está em alta, mano. O sexo é feito sem respeito e depende apenas do valor que tiveres.”
Fiquei a pensar.
Hoje, em muitos cantos da nossa cidade, o amor e a dignidade parecem ter sido substituídos por um levantamento sem cartão ou por uma transferência imediata. Nos bares, o coração é de quem paga mais. Relações que deveriam nascer da afetividade transformam-se em negócios de ocasião.
Essa tendência revela mais do que escolhas pessoais, mostra uma juventude sufocada pela falta de oportunidades, pelo culto da ostentação e pela ausência de referências sólidas. No fundo, é um retrato doloroso de uma sociedade onde alguns preferem sobreviver do bolso alheio em vez de criar caminhos próprios.
Mas nem tudo precisa terminar em lamento. Há saídas possíveis:
Educação e formação para que jovens homens e mulheres aprendam a distinguir valor pessoal de valor material.
Oportunidades económicas reais, desde o microcrédito até projectos comunitários, para que ninguém dependa da mesada de um outro para viver.
Resgate dos valores familiares e comunitários, para que a vida de bairro não se resuma a cartas, boatos e negócios de corpo, mas sim a solidariedade e criatividade.
Ouvindo Aniel e João, compreendi melhor que os bairros falam. E quando os bairros falam, mostram-nos que o amor, o trabalho e a dignidade correm o risco de se transformar em simples transferências. A pergunta que fica é: até quando vamos permitir que o coração da nossa sociedade bata apenas ao ritmo do dinheiro?
