Análise
O Turismo é o petróleo das comunidades: mas quem está a perfurar?
“O turismo pode ser o maior motor de inclusão económica em África, se for construído de baixo para cima.” – Carlos Lopes, economista e ex-secretário executivo da UNECA
1. Introdução: riqueza à vista, pobreza à volta
Angola é um país de belezas naturais inexploradas, património histórico subvalorizado e culturas locais ricas e autênticas. Da Foz do Cunene ao Maiombe, da Baía Azul ao Lubango, do Cuito Cuanavale ao Moxico profundo, há um potencial turístico imenso, mas adormecido. E mesmo nos locais onde o turismo já dá sinais de vida, como nas praias do Mussulo, nas quedas da Huíla ou no Parque da Quiçama, o que se observa é um modelo de extracção vertical: operadores externos colhem os frutos, enquanto as comunidades locais continuam sem acesso aos benefícios directos.
É o paradoxo do turismo africano: as comunidades têm o petróleo, mas não são donas da sonda.
2. O turismo como novo “ouro branco”
Em muitos países africanos, o turismo tornou-se uma alternativa económica estratégica. No Ruanda, representa já mais de 10% do PIB. Em Cabo Verde, o turismo é o principal motor da economia. Na Tanzânia, sustenta centenas de milhar de empregos, com forte participação comunitária. E em Angola?
Em Angola, ainda dominamos o discurso da “diversificação económica”, mas insistimos em práticas concentradoras. A maior parte dos empreendimentos turísticos está nas mãos de elites urbanas ou investidores estrangeiros, com pouca integração dos saberes locais, produtos locais e serviços informais.
Como afirma Achille Mbembe, “a globalização sem enraizamento produz apenas cosmética de vitrine.”
3. Turismo sem comunidade é turismo colonial
Se o turista chega de avião, vai directo para um hotel de capital estrangeiro, visita um sítio histórico sem guia local, consome comida importada, compra recordações fabricadas na China e regressa sem interagir com a cultura real, então não houve turismo: houve apenas consumo estéril de paisagem.
O turismo só é sustentável quando gera valor económico real para quem vive no território:
O camponês que fornece produtos ao restaurante local.
O jovem que trabalha como guia comunitário.
A senhora que vende artesanato tradicional.
O taxista que transporta visitantes para o interior.
A escola que ganha uma biblioteca porque a comunidade se organizou como destino turístico.
Isto é turismo como indústria social, e não como negócio de poucos.
4. Onde estão os planos municipais de turismo?
Um dos maiores erros do nosso modelo de governação é a centralização excessiva da política turística. Tudo gira à volta do governo central: licenças, projectos, campanhas, regulamentação. Os municípios, que são os verdadeiros territórios turísticos, não têm instrumentos nem autonomia para planificar o turismo de forma estratégica.
Quantos municípios em Angola têm um Plano Director Municipal de Turismo? Quantos têm inventário actualizado dos seus recursos culturais e naturais? Quantos possuem feiras de promoção turística local ou um website próprio? A resposta é clara: muito poucos.
O turismo precisa de começar de baixo para cima, da aldeia para o país, do bairro para a cidade, do município para a província. E para isso, é urgente capacitar as administrações locais em planeamento turístico, marketing territorial e empreendedorismo comunitário.
5. Propostas para um turismo verdadeiramente comunitário
Angola não precisa de reinventar a roda. Precisa de adaptar boas práticas aos seus contextos. Eis algumas sugestões práticas para transformar o turismo num verdadeiro motor de desenvolvimento local:
a) Criação de Roteiros Turísticos Comunitários
Municípios e comunidades devem organizar circuitos locais com base nos seus recursos culturais, históricos, naturais e espirituais. Ex: “Rota das Quedas da Huíla”, “Trilho da Memória do Bié”, “Circuito dos Heróis do Cunene”.
b) Formação de Guias Locais Jovens
A juventude local deve ser capacitada como protagonista: guias turísticos certificados, promotores culturais, intérpretes do território.
c) Fundos Municipais de Apoio ao Empreendedorismo Turístico
Microcrédito para mulheres artesãs, jovens guias, cooperativas de gastronomia local, centros culturais. O turismo deve gerar empregabilidade comunitária.
d) Plataformas Digitais Locais
Cada município pode ter uma plataforma simples (até via Facebook ou WhatsApp Business) para divulgar os seus pontos turísticos, alojamentos familiares e eventos culturais. A visibilidade é metade do caminho.
e) Parcerias com escolas e universidades locais
Para que o turismo também seja espaço de aprendizagem, pesquisa, estágio e inovação para os alunos dos cursos de História, Geografia, Informática, Comunicação e Hotelaria.
6. Conclusão: o petróleo acaba, a cultura não
O futuro de Angola não está apenas no subsolo. Está nas montanhas que ainda não foram mapeadas, nas histórias que ainda não foram contadas, nas danças que ainda não foram promovidas, nas comidas que ainda não foram valorizadas. O turismo é o petróleo das comunidades porque é renovável, é limpo, é partilhável, e é identitário.
Mas atenção: se as comunidades não forem protagonistas, o turismo será apenas mais uma forma de extracção, como o petróleo, o diamante ou a madeira.
Chegou o momento de perfurar a nossa própria riqueza, com políticas públicas justas, com descentralização efectiva e com uma nova ética do desenvolvimento local. Que o próximo “milagre económico” angolano venha do musseque, da sanzala, do kimbo, do soba e da mamã zungueira, e não apenas dos grandes investidores.