Opinião
O poder da sociedade civil na governação democrática
Num mundo marcado por profundas desigualdades sociais, crises ambientais, conflitos armados e fragilidades institucionais, a sociedade civil tem-se afirmado como um actor estratégico na defesa de direitos, promoção do desenvolvimento sustentável e construção de alternativas à lógica dominante do capital e da exclusão. Longe de ser um mero espectador, o tecido social organizado, formal ou informalmente, investe quotidianamente na construção de sociedades mais justas, inclusivas e resilientes.
A sua acção tem sido decisiva para o aumento da assertividade das políticas públicas, não apenas pela pressão popular que exerce, mas pela sua capacidade de denunciar ineficiências, propor soluções contextualizadas e exercer vigilância social. Como alerta Bo Rothstein (2011), “a qualidade das instituições públicas depende, em grande medida, da capacidade da sociedade civil em exigir responsabilidade e integridade no uso dos recursos públicos”. Nesse sentido, o investimento da sociedade civil é também um instrumento fundamental de combate à corrupção, pois cria canais de fiscalização cidadã, promove a transparência e rompe os pactos de silêncio que sustentam práticas ilícitas.
Segundo Michael Edwards (2009), autor de referência no debate sobre a sociedade civil, esta pode ser entendida como “a esfera da vida social organizada voluntariamente, que é distinta do Estado, da família e do mercado, embora interaja com os três”. Este campo de acção inclui associações comunitárias, organizações não-governamentais, sindicatos, igrejas, movimentos sociais, fundações filantrópicas, redes digitais de activistas e até plataformas juvenis e cooperativas locais. O seu poder de investimento não reside apenas na sua capacidade financeira, mas sobretudo na mobilização de pessoas, valores, ideias e estratégias de transformação social.
1. Investimentos Sociais que Mudam Realidades
Ao redor do mundo, a sociedade civil tem investido em diferentes frentes que os governos ou o sector privado, muitas vezes, negligenciam. Seja na provisão de serviços sociais básicos, como educação e saúde, seja na promoção dos direitos humanos e da justiça social, ou ainda na resiliência climática e inovação comunitária, os exemplos multiplicam-se.
No Bangladesh, o economista e Prémio Nobel da Paz Muhammad Yunus demonstrou que é possível combater a pobreza com instrumentos criativos e solidários ao criar o Grameen Bank, um banco de microcrédito que beneficia sobretudo mulheres rurais. Yunus defende que “o crédito é um direito humano” e que “a pobreza não é criada pelos pobres, mas pelo sistema”.
Na América Latina, movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, investem em formação política, agroecologia e autogestão, promovendo alternativas à monocultura e à dependência agroexportadora. Já na Colômbia, comunidades afrodescendentes e indígenas investem em redes de paz local, promovendo diálogo, justiça restaurativa e reconstrução do tecido social em regiões marcadas por décadas de violência.
Na Europa, o investimento da sociedade civil tem um carácter mais institucionalizado, com acesso a fundos públicos e presença efectiva nos processos participativos. Organizações como a Oxfam, Greenpeace, Amnesty International e Caritas Europa operam com grande capacidade de intervenção, monitorando políticas públicas, promovendo educação para a cidadania e investindo em projectos de cooperação internacional.
Segundo Salamon et al. (2003), a sociedade civil representa um sector económico e laboral relevante: no início do século XXI, já empregava cerca de 40 milhões de pessoas no mundo, movimentando 1,1 trilhão de dólares em actividades sociais. O investimento que estas organizações fazem nos territórios ultrapassa o assistencialismo e torna-se estratégico, transformador e político.
2. E em Angola?
O contexto angolano apresenta desafios singulares. Marcado por um longo período de guerra civil, centralização do poder, fragilidade institucional e altos níveis de pobreza multidimensional, Angola tem uma sociedade civil resiliente, mas ainda fortemente limitada em termos de espaço cívico, sustentabilidade financeira e reconhecimento legal.
Apesar disso, organizações religiosas, associações juvenis, grupos de mulheres, comités de bairro e ONG locais continuam a desenvolver actividades relevantes nas áreas da alfabetização, saúde comunitária, protecção de direitos das mulheres, segurança alimentar e capacitação cívica.
Contudo, como refere Justino Pinto de Andrade (2016), um dos mais respeitados intelectuais angolanos, “a sociedade civil angolana, embora combativa, continua por estruturar-se devidamente para disputar espaços de decisão pública. Falta-lhe organização interna, estratégias de mobilização de base e, sobretudo, financiamento autónomo”.
Neste panorama, a ausência de mecanismos de controlo social institucionalizados tem permitido a perpetuação de práticas corruptas e clientelistas. A sociedade civil, quando fortalecida, pode actuar como sentinela da integridade pública, denunciando desvios de conduta, promovendo educação cívica e exigindo prestação de contas dos decisores públicos. Como defende a Transparência Internacional (2023), “o engajamento activo da sociedade civil é um dos pilares mais sólidos de combate à corrupção sistémica”.
3. Caminhos e Propostas para o Investimento Social Sustentável
É urgente repensar o papel da sociedade civil em Angola como agente legítimo de desenvolvimento e guardiã da integridade pública. Para isso, sugerem-se algumas medidas inspiradas em boas práticas internacionais:
1. Criação de um Fundo Nacional de Apoio à Sociedade Civil, gerido de forma transparente, com acesso competitivo a micro e macroprojectos sociais.
2. Aprovação de leis de incentivo fiscal à doação filantrópica, como ocorre no Brasil e na África do Sul.
3. Formalização e capacitação técnica de organizações comunitárias, garantindo que tenham voz nos conselhos municipais, fóruns de planeamento e nas parcerias público-cívicas.
4. Estímulo ao empreendedorismo social, com linhas de crédito específicas para projectos com impacto social e ambiental.
5. Valorização do conhecimento local e das tecnologias sociais, como ferramentas legítimas de desenvolvimento territorial.
6. Criação de observatórios cívicos locais, em parceria com universidades e media, para monitorar políticas públicas e práticas orçamentais.
4. Conclusão: Investir na Sociedade Civil é Investir na Nação
A experiência internacional mostra que uma sociedade civil forte, autónoma e bem financiada é essencial para a estabilidade democrática, a justiça social e o desenvolvimento humano. Como defende Amartya Sen (1999), “o desenvolvimento é a expansão das liberdades reais das pessoas”. E ninguém está melhor posicionado para expandir essas liberdades do que o povo organizado em comunidades, redes, associações e movimentos.
Ao fortalecer a sociedade civil, Angola não estará apenas a investir em projectos sociais pontuais, mas a criar barreiras estruturais à corrupção, a melhorar a qualidade da governação e a aumentar a eficácia das políticas públicas. O Estado não perde quando compartilha poder com o povo, ganha legitimidade.
No final, o verdadeiro investimento social não se mede em cifrões, mas sim em vidas transformadas, consciências despertas e comunidades fortalecidas.