Análise
Nota 10, futuro zero: o dilema do ensino superior em Angola

O esclarecimento oficial do ISCED-Huíla, sobre a não abertura dos cursos de Matemática, Física, Química e Francês no regime pós-laboral por falta de candidatos que atingiram a nota mínima exigida, reacendeu o debate sobre a qualidade, a inclusão e o futuro do ensino superior em Angola.
Segundo a instituição, a decisão assenta no Decreto Presidencial n.º 5/19, de 8 de Janeiro, que fixa em 10 valores a nota mínima de ingresso no Ensino Superior (Artigo 17.º). O ISCED recorda ainda que o regime pós-laboral depende de fundos próprios e da viabilidade económica, não podendo abrir cursos sem número suficiente de estudantes.
O documento é juridicamente claro e transparente. Mas, para além da legalidade, levanta-se uma questão de fundo: pode Angola, um país em busca de desenvolvimento sustentável, abdicar da formação em áreas científicas críticas simplesmente porque os estudantes não atingiram a média exigida?
1. A contradição entre a lei e as necessidades nacionais
O Decreto Presidencial estabelece uma linha de rigor académico necessária, mas também confere competências à Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES) para propor outros critérios de selecção que atendam às prioridades nacionais (Artigo 11.º).
Ora, se o Estado reconhece que a educação é um instrumento de desenvolvimento, então deveria olhar para estas áreas como estratégicas, merecendo um tratamento diferenciado. O fecho de cursos de Matemática, Física, Química e Francês não é apenas uma decisão administrativa: é uma mensagem política de que estas áreas deixam de ser prioridade imediata.
2. Consequências de cancelar cursos estratégicos
1. Défice estrutural de professores: Ao não formar novos docentes nestas áreas, o próprio sistema secundário e médio fica comprometido, perpetuando a falta de qualidade no ensino e reduzindo ainda mais o número de estudantes aptos a entrar no ensino superior.
2. Dependência externa: Países que não investem em ciências básicas tornam-se reféns de tecnologias importadas e perdem soberania científica. Angola corre o risco de continuar a depender de especialistas estrangeiros em sectores como energia, saúde, ambiente e inovação tecnológica.
3. Enfraquecimento da competitividade nacional: Num mundo cada vez mais competitivo, o domínio das ciências exactas e de línguas estrangeiras é uma arma estratégica. Cancelar cursos nessas áreas significa aceitar o atraso científico e económico.
4. Desigualdades sociais ampliadas: O regime pós-laboral é o espaço onde muitos trabalhadores e cidadãos que não podem estudar de dia encontram oportunidade de ascensão. O seu fecho, por falta de candidatos “com nota suficiente”, acaba por excluir ainda mais quem já está em desvantagem social.
3. Alternativas possíveis: não cancelar, mas reinventar
É possível conciliar rigor académico com inclusão estratégica. O Estado e as instituições poderiam adoptar medidas como:
Cursos propedêuticos de nivelamento: criar um ano preparatório em Matemática, Física, Química e Línguas, para que os candidatos sem nota mínima consolidem bases antes de ingressar oficialmente no curso.
Política de excepção para áreas críticas: a CNAES, conforme o Artigo 11.º, pode sugerir critérios diferenciados para cursos estratégicos, ajustando as regras de ingresso à realidade nacional.
Programas de incentivo: bolsas, subsídios e campanhas que estimulem jovens a seguir carreiras científicas, invertendo a tendência de abandono.
Alinhamento entre ensino secundário e superior: previsto na lei (Artigo 11.º, alínea e), deve ser reforçado para reduzir a distância curricular que impede os estudantes de atingirem a nota mínima.
Ensino pós-laboral sustentável: encontrar modelos de financiamento misto, em que o Estado subsidie parte dos custos, permitindo que os cursos tenham continuidade mesmo com turmas reduzidas.
4. O dilema político e cultural
No fundo, este não é apenas um problema académico ou legal. É também um problema político e cultural. A sociedade angolana tem dado maior prestígio a cursos de ciências sociais e humanas, em detrimento das ciências exactas, muitas vezes vistas como “difíceis” ou “sem saída imediata”.
Entretanto, os países que hoje lideram em inovação, da China à Coreia do Sul, fizeram o caminho inverso: investiram fortemente nas ciências duras, construindo capital humano científico como pilar da sua transformação económica.
Em Angola, ao invés de aproveitar o momento para reformar o sistema educativo, optou-se pelo cancelamento temporário, que só agrava o défice estrutural.
5. Conclusão: Nota mínima ou visão máxima?
O esclarecimento do ISCED-Huíla combateu a desinformação, mas deixou claro um dilema maior: a lei assegura rigor, mas o país exige flexibilidade estratégica.
A nota mínima de 10 valores não deve ser abolida, mas pode e deve ser acompanhada de mecanismos alternativos de inclusão. Caso contrário, Angola arrisca-se a hipotecar o futuro científico e tecnológico em nome de um formalismo imediato.
Em vez de cancelar, o ensino superior deve criar soluções criativas e inclusivas, capazes de transformar dificuldades em oportunidades de crescimento.
O verdadeiro desenvolvimento de uma nação mede-se pela forma como lida com os seus desafios. Cancelar cursos científicos é abdicar do futuro; reinventá-los é preparar a soberania nacional.