Análise
MPLA: do monopólio do poder à rejeição popular

Introdução: O Fardo da História e o Desafio do Presente
O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) construiu-se como o partido da libertação nacional, símbolo da vitória sobre o colonialismo português e guardião da independência conquistada em 1975. Durante décadas, a sua identidade foi inseparável da própria definição do Estado angolano, estabelecendo-se um modelo de partido hegemónico que sobreviveu a guerras internas, crises económicas e transições constitucionais. Contudo, os últimos vinte anos revelam sinais consistentes de declínio político, social e eleitoral, levantando a questão inevitável: estará o MPLA a aproximar-se do fim do seu ciclo histórico de domínio?
1. Declínio Eleitoral: Da Hegemonia ao Risco de Alternância
A trajectória eleitoral do MPLA ilustra de forma clara este declínio. Após a vitória esmagadora de 2008 com 81,64% dos votos, o partido viu a sua base reduzir-se em cada pleito subsequente: 71,84% em 2012, 61,08% em 2017 e, finalmente, 51,17% em 2022. O caso de Luanda é paradigmático: a capital, que concentra mais de 30% do eleitorado nacional, foi conquistada pela oposição, revelando um deslocamento simbólico e estratégico.
Segundo Samuel Huntington (1991), em The Third Wave, a legitimidade dos regimes autoritários tende a colapsar quando perdem o controlo dos grandes centros urbanos, pois estes funcionam como laboratórios da mudança política. No caso angolano, a derrota do MPLA em Luanda é um indicador claro de que o partido já não detém a confiança das massas urbanas, onde reside a juventude mais instruída e crítica.
2. Juventude e Descontentamento Social
Mais de 65% da população angolana tem menos de 25 anos. Esta geração não viveu a luta de libertação, não se identifica com a narrativa do herói libertador e exige soluções concretas para os seus problemas imediatos: desemprego, falta de habitação, precariedade social e ausência de perspectivas.
De acordo com Mbembe (2020), em Políticas da Inimizade, os jovens africanos contemporâneos estão a romper com os discursos da “velha guarda” e a procurar novos espaços de participação, muitas vezes fora dos canais tradicionais do Estado. Esta tendência confirma-se em Angola através das manifestações juvenis, do activismo digital e do crescimento da UNITA entre os mais jovens.
A crise de legitimidade do MPLA não é apenas eleitoral, é também geracional: um partido envelhecido a governar um país jovem.
3. Corrupção, Nepotismo e a Crise Económica
A associação entre MPLA e corrupção sistémica tornou-se uma das críticas mais fortes da sociedade. Escândalos envolvendo figuras de topo do partido, acusações de nepotismo e enriquecimento ilícito de elites ligadas ao poder corroeram a confiança pública.
Embora João Lourenço tenha lançado a sua cruzada anticorrupção desde 2017, a percepção popular é que a campanha foi mais selectiva do que estrutural, punindo figuras específicas sem desmontar os mecanismos que sustentam o patrimonialismo do Estado.
Ricardo Soares de Oliveira (2015), em Magnificent and Beggar Land, descreve Angola como um exemplo paradigmático de Estado rentista e patrimonial, em que as rendas do petróleo foram distribuídas de forma desigual para consolidar o poder da elite governante. A queda do preço do petróleo em 2014 expôs a fragilidade deste modelo, mergulhando o país em crise cambial, inflação e desemprego em massa.
Assim, o declínio do MPLA está também ligado à sua incapacidade de reinventar o modelo económico.
4. Oposição e Sociedade Civil como Novos Actores Políticos
A UNITA, outrora estigmatizada pelo passado da guerra civil, reconstruiu-se como partido da modernidade e da alternância. Sob a liderança de Adalberto Costa Júnior, tem atraído jovens, intelectuais e até antigos apoiantes do MPLA descontentes com a estagnação do partido no poder.
Além disso, movimentos cívicos e activistas digitais têm desempenhado papel crucial na pluralização do espaço público, questionando directamente a narrativa hegemónica do MPLA. As redes sociais funcionam hoje como espaço de contrapoder, algo que o partido nunca enfrentou nas décadas anteriores.
Como defende Nic Cheeseman (2018) em Democracy in Africa, a alternância de poder em contextos africanos contemporâneos é cada vez mais impulsionada por uma aliança entre juventudes urbanas, sociedade civil e partidos de oposição. Angola segue essa tendência.
5. A Fragilidade do Modelo de Estado-Partido
O MPLA governou Angola como um Estado-Partido, onde a fronteira entre o público e o privado é fluida. Durante décadas, controlar o Estado significava controlar também o partido e vice-versa. Contudo, este modelo tornou-se insustentável diante da pressão por maior pluralismo.
Segundo Francis Fukuyama (2014) em Political Order and Political Decay, os regimes que não conseguem separar os interesses partidários das instituições públicas caminham inevitavelmente para a erosão da legitimidade e a fragilização da democracia. É precisamente este dilema que se coloca ao MPLA: manter o monopólio ou aceitar a competição democrática plena.
6. Comparações Regionais: Lições de Outros Partidos Dominantes
O caso angolano não é único. Vários partidos dominantes africanos enfrentaram crises semelhantes:
ANC na África do Sul: após décadas de hegemonia, perdeu prestígio por causa da corrupção e da má gestão económica, enfrentando hoje eleições cada vez mais competitivas.
ZANU-PF no Zimbabué: perdeu apoio popular mas manteve-se no poder através de repressão e manipulação eleitoral, à custa de isolamento internacional.
FRELIMO em Moçambique: mantém domínio, mas enfrenta contestação crescente devido à corrupção e à incapacidade de lidar com insurgências.
Segundo Michael Bratton e Nicolas van de Walle (1997), partidos dominantes em África entram em declínio quando enfrentam três condições simultâneas: perda de legitimidade histórica, crise económica e incapacidade de absorver a pressão social urbana. O MPLA reúne hoje todas estas características.
7. O Futuro do MPLA: Reformar ou Perecer
O MPLA enfrenta uma encruzilhada histórica:
1. Reformar-se profundamente, democratizando-se internamente, abrindo-se à sociedade e promovendo uma governação transparente.
2. Resistir à mudança, arriscando-se a perder legitimidade de forma irreversível e enfrentar a alternância já nas próximas eleições.
Como lembra Adam Przeworski (1991), a sobrevivência de um regime depende da sua capacidade de se adaptar às condições de incerteza democrática. Sem adaptação, o destino do MPLA poderá ser o mesmo de outros partidos outrora dominantes que acabaram derrotados pela história.
Conclusão: O Crepúsculo da Hegemonia?
O declínio do MPLA é hoje visível em múltiplas dimensões: eleitoral, social, económica e simbólica. De partido libertador, transformou-se em partido contestado. O futuro do país depende da forma como esta transição será gerida: pela reforma ou pela resistência.
Seja qual for o desfecho, a ciência política ensina-nos que nenhum partido é eterno. O que está em causa não é apenas a sobrevivência do MPLA, mas o nascimento de uma nova Angola política, marcada pela pluralidade, pela juventude e pela exigência de verdadeira democracia.