Opinião
Farinha, milho e óleo existem… o problema é chegar baratos à mesa do cidadão
1. Sustentabilidade e autossuficiência como eixos estratégicos da governação Económica.
A sustentabilidade e a autossuficiência alimentar assumem, no contexto actual, um papel central na arquitectura das políticas públicas orientadas para a segurança alimentar, a estabilidade macroeconómica e a soberania nacional. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2018), a autossuficiência alimentar consiste na capacidade de um país assegurar, por via da produção interna, o fornecimento regular de bens essenciais, como cereais, óleos alimentares e outros produtos de largo consumo, reduzindo a dependência externa e os choques provocados pelo mercado internacional.
Ignacy Sachs (2015) acrescenta que a sustentabilidade económica só se concretiza quando o crescimento produtivo se traduz em benefícios sociais tangíveis, nomeadamente preços acessíveis, criação de emprego e melhoria do bem-estar das famílias. É neste enquadramento conceptual que deve ser analisada a recente declaração oficial segundo a qual Angola já atingiu a autossuficiência na produção de farinha de trigo, milho e óleo alimentar, no âmbito das políticas do sector da Indústria e Comércio.
2. O discurso oficial e a narrativa da autossuficiência produtiva
Durante o acto de cumprimentos de fim de ano do sector da Indústria e Comércio, o Ministro Rui Miguêns de Oliveira afirmou que o país tem vindo a reforçar a sua capacidade produtiva interna, com destaque para bens alimentares essenciais, sublinhando que o foco do Executivo está na consolidação da indústria transformadora, no aumento da produção agrícola e na redução da dependência externa.
No seu discurso, o governante destacou que “o sector tem apostado no reforço da indústria transformadora e no aumento da capacidade produtiva agrícola, com vista à autossuficiência progressiva em bens essenciais”, apontando programas como o PRODESI e o PIDCR como instrumentos estruturantes para o estímulo da economia real. Referiu, igualmente, a importância da regulação do mercado e anunciou a aquisição de 300 toneladas de milho na província da Huíla pelo Entreposto Aduaneiro de Angola, como medida destinada ao reforço da oferta nacional.
O discurso é coerente com a visão estratégica do Executivo e revela uma orientação clara para a valorização da produção nacional. No entanto, como ensina a economia política do desenvolvimento, entre o discurso e os efeitos reais no mercado existe um espaço crítico que deve ser analisado com rigor.
3. Autossuficiência declarada e autossuficiência sentida pelo cidadão
Michael Porter (1998) sustenta que a competitividade de uma economia se mede pela sua capacidade de gerar valor para os consumidores, e não apenas pela existência de capacidade produtiva instalada. Assim, quando se afirma que um país é autossuficiente em farinha, milho e óleo alimentar, os impactos esperados deveriam ser visíveis no quotidiano das famílias.
No caso da farinha, isso significaria pão mais barato, maior estabilidade de preços e maior disponibilidade de derivados. No caso do óleo alimentar, um dos produtos mais consumidos nos lares angolanos, seria expectável observar preços mais acessíveis, menor pressão inflacionista e redução efectiva da dependência das importações.
Todavia, a realidade demonstra que tanto o pão como o óleo alimentar continuam a representar um peso significativo no orçamento das famílias, sobretudo das camadas sociais mais vulneráveis. Este facto sugere que a autossuficiência, embora em progresso do ponto de vista produtivo, ainda não se consolidou plenamente do ponto de vista económico e social.
4. O preço do pão e do óleo como indicadores da autossuficiência real
Joseph Stiglitz (2012) defende que os preços dos bens essenciais funcionam como indicadores directos da eficácia das políticas públicas. Num cenário de verdadeira autossuficiência, os preços do pão e do óleo alimentar deveriam reflectir custos internos mais baixos, maior concorrência e menor exposição às flutuações cambiais.
Quando isso não acontece, tornam-se evidentes vários constrangimentos estruturais, tais como custos elevados de energia, fragilidades logísticas, dificuldades de financiamento e fraca articulação entre produção agrícola, indústria transformadora e canais de distribuição. Ha-Joon Chang (2009) alerta que muitos países em desenvolvimento produzem internamente, mas não conseguem converter essa produção em preços acessíveis devido a falhas sistémicas na cadeia de valor.
5. Derivados da farinha, óleos e outros produtos de consumo preferencial
A autossuficiência em farinha e óleo alimentar deveria igualmente impulsionar a indústria de produtos derivados, como massas alimentares, bolachas, margarinas, produtos de pastelaria e conservas. Paul Krugman (1991) explica que uma base produtiva sólida favorece economias de escala, inovação e maior diversidade de produtos no mercado.
Em Angola, apesar de avanços pontuais na indústria transformadora, muitos destes produtos continuam a ser importados ou apresentam preços elevados, limitando o impacto social da produção interna. Tal realidade demonstra que a autossuficiência não se esgota na produção primária, exigindo antes uma integração eficiente de toda a cadeia agro-industrial.
Experiências internacionais de autossuficiência em cereais e óleos alimentares
A experiência internacional demonstra que os países que alcançaram autossuficiência em cereais e óleos alimentares adoptaram estratégias integradas, consistentes e sustentadas no tempo.
Brasil: integração da cadeia agro-industrial
O Brasil investiu simultaneamente na produção de grãos e na indústria de óleos vegetais, aliando ciência, crédito agrícola e logística. Segundo Buainain et al. (2014), esta estratégia permitiu reduzir os preços internos dos alimentos e fortalecer a indústria nacional.
Índia: políticas públicas orientadas para o consumo interno
A Índia combinou a Revolução Verde com políticas de armazenamento estratégico e controlo de preços de bens essenciais, incluindo cereais e óleos alimentares. Amartya Sen (1999) destaca que o sucesso indiano resultou da articulação entre produção, distribuição e protecção do consumidor.
Marrocos: regulação e estabilidade de preços
Marrocos apostou em subsídios selectivos, regulação do mercado e infra-estruturas de armazenamento para garantir estabilidade no abastecimento de cereais e óleos alimentares. O Banco Mundial (2020) reconhece que esta abordagem contribuiu para a protecção do poder de compra das famílias.
6. O desafio angolano: da produção à justiça económica
Angola dispõe de instrumentos estratégicos relevantes, como o PRODESI e o PIDCR, e o discurso do Executivo aponta na direcção correcta. Contudo, como sublinha Henry Mintzberg (1994), o maior desafio das políticas públicas não reside na formulação, mas na execução e na coordenação institucional.
Enquanto o aumento da produção interna não se traduzir em redução efectiva dos preços do pão, do óleo alimentar e de outros produtos de consumo preferencial, a autossuficiência continuará a ser percebida como um objectivo em construção.
7. Considerações finais: transformar produção em bem-estar social
A autossuficiência alimentar em farinha, milho e óleo alimentar constitui um passo estratégico essencial para a sustentabilidade económica e a diversificação produtiva de Angola. No entanto, como ensina Amartya Sen (2009), o verdadeiro desenvolvimento mede-se pela melhoria concreta das condições de vida das pessoas.
O desafio que se coloca ao país não é apenas produzir mais, mas assegurar que essa produção chegue ao mercado a preços justos, garantindo que o pão, o óleo e outros bens essenciais deixem de ser factores de pressão sobre o custo de vida e passem a ser símbolos de uma economia verdadeiramente sustentável, inclusiva e orientada para o cidadão.