Análise
Educação ou mercado? A crise de identidade da universidade pública em Angola
1. Introdução: A Universidade na Encruzilhada do Saber e do Poder
A universidade é um dos pilares centrais do desenvolvimento das nações. Mais do que um espaço de ensino e investigação, é um actor activo no desenho e na execução das políticas públicas. Assume, ao mesmo tempo, a função de formadora e captadora de talentos que sustentam a governação, a inovação e a transformação social.
Conforme assinala Boaventura de Sousa Santos (2004), a universidade deve “reinventar-se como instituição pública que produz saberes socialmente úteis e politicamente relevantes”. No contexto angolano, essa reinvenção é urgente, pois o país enfrenta desafios estruturais que exigem instituições de ensino superior capazes de unir o conhecimento científico à prática política e económica, promovendo a justiça social e a inclusão.
A intervenção recente do Ministro do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação, Albano Vicente Lopes Ferreira, durante a cerimónia de abertura do ano académico 2025/2026, realizada a 3 de Outubro, reforça essa visão. O governante afirmou que o ensino superior angolano “deve ser socialmente acessível, útil e pertinente para responder à crescente demanda dos jovens” que aspiram à formação universitária e à inserção no mercado de trabalho (Jornal Académico, 2025).
O discurso ministerial é coerente com o princípio da democratização do acesso ao ensino superior. Contudo, o apelo ocorre num contexto desafiante: as propinas nas instituições públicas e privadas aumentaram, contrariando o princípio de acessibilidade defendido pelo titular da pasta. Nos últimos três anos, universidades e institutos politécnicos registaram aumentos acumulados entre 15% e 40%, agravados pela inflação e pela ausência de políticas de contenção de custos no sector. Este paradoxo revela o hiato entre o ideal político e a realidade económica do ensino superior angolano e evidencia a necessidade de políticas públicas sustentadas em dados e investigação científica.
2. O Papel Político da Universidade na Construção das Políticas Públicas
2.1 A Universidade como Fonte de Evidências para o Estado
A formulação de políticas públicas eficazes depende da produção de conhecimento científico rigoroso. Segundo Peter Drucker (1993), “o conhecimento é o principal recurso político e económico da era moderna”. A universidade é a principal fornecedora de evidências e diagnósticos que orientam o Estado na elaboração de políticas sustentáveis.
Thandika Mkandawire (2001) defende que “nenhum Estado africano poderá desenhar políticas eficazes se depender exclusivamente de saberes importados”. Assim, as universidades angolanas devem investir na produção de conhecimento endógeno, capaz de reflectir as especificidades nacionais e regionais e transformar a realidade social a partir de dentro.
2.2 O Diálogo entre Academia e Governo
A cooperação entre universidades e órgãos de governação deve ser estruturada, permanente e orientada por resultados. Conforme recomenda a UNESCO (2009), as instituições de ensino superior precisam reforçar o seu papel na formulação de políticas públicas e no desenvolvimento sustentável, assegurando que “o conhecimento académico se traduza em inovação social e progresso económico”.
Essa colaboração não deve limitar-se à consultoria pontual. É fundamental criar mecanismos institucionais de diálogo, como conselhos consultivos, observatórios de políticas públicas e redes de investigação aplicada, que permitam à universidade participar activamente em todo o ciclo das políticas públicas: da concepção à avaliação.
Em Angola, isso implica redefinir a política de financiamento e a autonomia das universidades, garantindo que actuem com liberdade científica e responsabilidade social.
3. A Universidade como Captadora e Formadora de Talentos
3.1 O Capital Humano como Base do Desenvolvimento Nacional
O desenvolvimento de qualquer nação depende da qualidade dos seus recursos humanos. Como afirma Amartya Sen (1999), “o desenvolvimento é a expansão das liberdades humanas”, e a educação superior é o instrumento que permite a cada cidadão transformar conhecimento em liberdade e competência cívica.
A universidade, enquanto formadora de talentos, deve orientar-se por uma visão estratégica que responda às necessidades nacionais: diversificação económica, modernização administrativa, turismo competitivo, inovação tecnológica e governação digital.
Contudo, o aumento das propinas e o custo de vida crescente ameaçam esse ideal. A acessibilidade ao ensino superior é o primeiro passo para a democratização do conhecimento, e quando o acesso é comprometido, o país perde talentos potenciais. A advertência do Ministro Albano Vicente Ferreira é, portanto, um chamamento à coerência entre o discurso político e as práticas institucionais, pois o investimento em educação é também investimento em capital humano e social.
3.2 A Universidade como Ecossistema de Inovação e Empreendedorismo
Manuel Castells (1999) caracteriza as universidades como “nós centrais das redes globais de conhecimento”. Nelas nasce o espírito de inovação, a capacidade de resolver problemas e a vocação empreendedora. O ensino superior angolano precisa reforçar essa dimensão, criando incubadoras, laboratórios de políticas públicas e centros de inovação tecnológica que transformem ideias académicas em soluções económicas.
A universidade moderna é, assim, um ecossistema de talentos, onde a criatividade e a investigação aplicada caminham lado a lado. Talentos bem orientados e apoiados tornam-se empreendedores, investigadores e líderes públicos capazes de impulsionar a competitividade nacional.
4. O Conhecimento como Poder Público e Social
4.1 A Democratização do Saber como Política Pública
Paulo Freire (1996) lembra que “educar é um acto político”. Assim, a educação superior é uma das expressões mais visíveis da acção pública. A democratização do saber significa levar o conhecimento às comunidades, integrar saberes tradicionais na investigação científica e tornar a universidade um espaço de diálogo intercultural e socialmente comprometido.
4.2 A Responsabilidade Social das Universidades
Clark Kerr (1963) descreve a universidade como “uma comunidade de comunidades”. Essa definição sugere que ela deve interagir com o seu meio envolvente de forma responsável e solidária. No caso angolano, isso significa apoiar os governos locais, as autarquias emergentes e as organizações da sociedade civil na formulação de planos estratégicos, políticas de inclusão e programas de desenvolvimento comunitário.
5. O Caso Angolano: Entre o Ideal e a Realidade
A afirmação do Ministro Albano Vicente Ferreira, de que o ensino superior deve ser socialmente acessível e útil, reflecte um ideal partilhado por muitos académicos e decisores. No entanto, o aumento contínuo das propinas e o custo de manutenção das universidades mostram uma distância entre o discurso e a prática.
Essa contradição revela um desafio central das políticas públicas em Angola: garantir a sustentabilidade financeira das universidades sem comprometer o acesso e a equidade. Trata-se de uma questão de política educacional e de justiça social, pois o ensino superior é, simultaneamente, um direito e um investimento colectivo.
6. A Universidade como Ponte entre Ciência, Política e Sociedade
A universidade, ao articular o conhecimento científico com as necessidades públicas, transforma-se num actor político e social de primeira ordem. Boaventura de Sousa Santos (2004) afirma que “a universidade deve ser um espaço de produção de utopias concretas”. É nesse sentido que o ensino superior angolano deve actuar: propor soluções práticas, baseadas na ciência e orientadas para o bem comum.
A cooperação entre universidades, empresas e o Estado pode gerar modelos inovadores de financiamento, formação dual e investigação aplicada, capazes de reduzir as desigualdades e de sustentar o crescimento inclusivo.
7. Conclusão: A Universidade como Consciência Crítica e Motor da Nação
A universidade é a consciência crítica e a inteligência colectiva da sociedade. É nela que se formam os líderes, os investigadores e os cidadãos que moldarão o futuro. Para que Angola avance, é preciso que o ensino superior seja verdadeiramente acessível, útil e pertinente, conforme defende o Ministro Albano Vicente Ferreira, mas também autónomo, inovador e comprometido com a transformação social.
Como lembrava Nelson Mandela (1994), “a educação é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo”. Cabe à universidade angolana empunhar essa arma com sabedoria, justiça e visão de futuro, tornando-se o principal actor das políticas públicas e o maior captador de talentos da nação.