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Crise de participação nas eleições da ORMED: sinal de alerta para a classe médica

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As eleições de 2025 da Ordem dos Médicos de Angola (ORMED) deveriam ser um momento de celebração da democracia associativa e da afirmação da classe médica. No entanto, os dados divulgados pela Academia Angolana de Medicina, com base na Comissão Nacional Eleitoral (CNE), revelam uma realidade preocupante: uma taxa de abstenção de 95% entre os médicos inscritos. Este número, por si só, é um diagnóstico grave de uma doença que corrói silenciosamente as instituições – a apatia profissional e a desconfiança institucional.

Em 2019, quando a Dra. Elisa Gaspar foi eleita bastonária, havia cerca de 7.193 médicos inscritos, dos quais 2.086 votaram. Já em 2025, com cerca de 12.659 médicos, apenas 658 exerceram o seu direito de voto, elegendo a Dra. Jovita André com 327 votos – ou seja, apenas 3% do total de médicos registados. A participação eleitoral, em vez de crescer com o aumento da comunidade médica, colapsou. E isso exige reflexão.

Não se trata apenas de números. Trata-se da credibilidade de uma instituição que deveria ser o espelho da ética, da competência e da união da classe médica. Uma Ordem que representa milhares de profissionais não pode ser dirigida com base na vontade expressa de uma minoria ínfima. Quando apenas três em cada cem médicos participam num processo eleitoral, a legitimidade representativa fica inevitavelmente comprometida.

As causas são múltiplas e interligadas. A primeira é a distância entre a Ordem e os seus membros. Muitos médicos sentem que a ORMED deixou de ser um espaço de defesa dos seus direitos, de valorização profissional e de promoção da saúde pública. A Ordem é, para muitos, uma estrutura burocrática e pouco transparente, que aparece apenas para cobrar quotas e emitir declarações. A segunda causa é a falta de comunicação eficaz e inclusiva. Num país com assimetrias regionais marcadas e limitações tecnológicas, a ausência de canais modernos e descentralizados de votação afasta ainda mais os profissionais do interior e das províncias.

Há também um problema de cultura associativa. Em Angola, a participação em estruturas de classe ainda é vista, muitas vezes, como irrelevante. No entanto, uma Ordem forte é essencial para a defesa da dignidade médica, da qualidade do exercício profissional e da ética de serviço público. Quando os médicos não participam, perdem o direito moral de exigir mudanças. E quando a Ordem não ouve, perde a legitimidade de representar.

O contraste entre 2019 e 2025 é, portanto, mais do que estatístico – é simbólico. Em 2019, com menos médicos, houve mais votos. Em 2025, com o dobro dos profissionais, o voto praticamente desapareceu. Isto indica uma crise de confiança e uma urgente necessidade de reforma. É imperativo repensar o modo como a Ordem comunica, como se organiza e como se apresenta aos seus membros.

Uma reforma estatutária, que permita o voto eletrónico seguro, a criação de assembleias regionais participativas e a maior transparência financeira, pode ser o primeiro passo para restaurar a confiança. Mas, mais do que mudar o sistema, é preciso mudar a cultura – fazer da Ordem um espaço de pertença, debate e valorização, e não apenas uma entidade administrativa.

As eleições de 2025 não devem ser vistas como o fim de um ciclo, mas como um alerta coletivo. A apatia não é apenas um problema político; é um sintoma institucional que ameaça a coesão da classe médica. Cabe agora aos líderes eleitos e à própria comunidade refletir: que Ordem queremos? Uma que existe apenas no papel, ou uma que pulsa com a voz, o voto e o compromisso de cada médico?

Se não houver uma resposta firme e uma mudança de rumo, a próxima eleição poderá não ser apenas marcada pela abstenção, mas pelo silêncio absoluto de uma classe que desistiu de si própria.

Doutorando em Doenças Tropicais e Saúde Global, Mestre em Medicina, Mestre em Saúde Pública, Especialista em Pediatria, Especialista em Administração Hospitalar, Pós-graduado em Economia da Saúde e Resultados em Saúde. Licenciado em Medicina e também Licenciado em Enfermagem. Docente Universitário e Presidente da Academia Angolana de Medicina.

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