Análise
Cofre Geral da Justiça: o colapso da governação dentro da própria governação

O recente relatório do auditor externo e do conselho fiscal sobre o Cofre Geral da Justiça (CGJ), publicado no Jornal Expansão, não deve ser visto apenas como um episódio de má gestão administrativa, mas como um espelho da fragilidade dos mecanismos de governação corporativa no Estado angolano. As irregularidades identificadas, como défices orçamentais, pagamentos duplicados, contratos sem fiscalização e ausência de controlo interno, representam falhas sistémicas que colocam em causa os princípios fundamentais de integridade e transparência que deveriam nortear a administração pública.
Segundo Tricker (2015), a governação corporativa é o “sistema pelo qual as organizações são dirigidas e controladas”, e isso implica uma relação clara entre autoridade, responsabilidade e prestação de contas. No caso do CGJ, essa tríade parece ter sido substituída por uma lógica de informalidade e autonomia financeira excessiva, onde a fiscalização é frágil e a responsabilidade se dilui entre órgãos sem coordenação.
1. A essência da boa governação
De acordo com o Relatório Cadbury (1992), considerado o documento fundador da moderna governação corporativa, a transparência e a prestação de contas são os dois pilares fundamentais que asseguram a confiança nas instituições. Quando estas dimensões são negligenciadas, abre-se espaço para a opacidade, o desperdício e a corrupção.
Em Angola, a Constituição da República e as leis de execução orçamental reforçam que toda a gestão de recursos públicos deve obedecer a critérios de responsabilidade, eficiência e controlo fiscal. No entanto, os factos expostos no relatório do CGJ demonstram que a realidade institucional ainda está distante deste ideal.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE, 2015) defende que a governação corporativa, no sector público, deve “promover a integridade e a confiança dos cidadãos nas instituições do Estado”. A ausência de rigor no controlo financeiro do Cofre Geral da Justiça mina exactamente essa confiança e põe em causa o princípio de legitimidade do próprio Estado, cuja função primordial é gerir os recursos públicos em benefício colectivo.
2. A urgência da reforma institucional
Diante deste cenário, impõe-se um debate sério sobre a urgente extinção ou reestruturação profunda do actual modelo de execução das despesas do Cofre Geral da Justiça, que deve passar a ser gerido sob a exclusiva responsabilidade do Ministério das Finanças.
Tal como defende Silveira (2010), a separação clara entre gestão operacional e supervisão financeira é essencial para garantir independência e controlo eficaz. O Ministério das Finanças possui os instrumentos técnicos, jurídicos e tecnológicos adequados, nomeadamente o Sistema Integrado de Gestão Financeira do Estado (SIGFE), para assegurar que cada kwanza arrecadado e gasto esteja devidamente registado, auditado e controlado.
Essa mudança não é apenas uma questão de eficiência administrativa, mas também um imperativo moral e político. A governação moderna exige estruturas robustas e sistemas de controlo internos sólidos. Como sublinham Shleifer e Vishny (1997), “as instituições prosperam quando existe accountability, isto é, quando quem gere o dinheiro público responde perante quem o fornece”.
3. Exemplo e uniformização nos fundos públicos
A situação do CGJ deve servir como exemplo paradigmático para outras instituições financeiras públicas e fundos especiais, como o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Agrário (FADA), o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Económico e Social (FARE), o Fundo Soberano de Angola e tantos outros. Estes organismos, frequentemente criados com finalidades nobres, acabam por se tornar ilhas orçamentais sem mecanismos de auditoria eficazes nem reporte público regular.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC, 2020), a governação pública deve “alinhar os princípios de legalidade e eficiência à transparência e responsabilidade social”. Isso significa que os fundos públicos devem seguir regras uniformes de prestação de contas, sujeitando-se a auditorias independentes e a avaliações externas regulares.
Em Angola, a aplicação desses princípios não é apenas uma exigência técnica, é uma condição de sustentabilidade democrática e económica. Onde não há controlo, a corrupção transforma-se em cultura.
4. Governar é prestar contas
A governação corporativa não é um luxo teórico reservado às empresas privadas. É um instrumento essencial de ética e racionalidade na gestão pública. Tal como argumentam Monks e Minow (2011), “a boa governação não é uma escolha moral, é uma necessidade de sobrevivência institucional”.
No contexto angolano, governar com transparência significa restaurar a confiança dos cidadãos, assegurar a credibilidade dos órgãos públicos e demonstrar que o Estado é capaz de se governar a si mesmo.
A verdadeira reforma da governação em Angola começa pela autodisciplina institucional. Não há Estado forte quando os seus cofres são frágeis, nem moral administrativa quando o exemplo vem corrompido da própria máquina pública.
O Cofre Geral da Justiça deve ser o ponto de viragem, o marco zero de um novo paradigma de responsabilidade e rigor na administração dos recursos públicos.
Em síntese, sem governação corporativa não há governação pública eficaz. O Estado deve liderar pelo exemplo, e o exemplo começa, necessariamente, por colocar ordem no seu próprio cofre.