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Análise

Janela Única Fundiária: qual é o verdadeiro alcance do Decreto 84/25?

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O Decreto Presidencial n.º 84/25, que cria a Janela Única de Concessão de Direitos Fundiários, surge como resposta às dificuldades burocráticas e administrativas que historicamente têm limitado o acesso à terra em Angola. Ao enquadrar-se no Projecto SIMPLIFICA 1.0, o diploma visa “remover os embaraços administrativos que se tem verificado no procedimento de concessão de direitos fundiários”, estabelecendo um novo paradigma de celeridade e eficiência.

Contudo, como lembra Amartya Sen (1999), o desenvolvimento não pode ser reduzido a processos administrativos; ele depende da capacidade real das pessoas de transformarem os recursos em bem-estar. Assim, a terra, para além de um direito formalmente concedido, deve constituir um meio efectivo de geração de riqueza, emprego e coesão social.

1. O Verdadeiro Sentido da Concessão Fundiária

O Artigo 5.º do decreto é claro quanto aos objectivos fundamentais da concessão:

o “adequado ordenamento do território e correcta formação, ordenação e funcionamento dos aglomerados urbanos”;

a “protecção do ambiente e utilização eficiente e sustentável das terras”;

e a “prioridade do interesse público e do desenvolvimento económico e social”.

Estes objectivos dialogam directamente com a visão de Celso Furtado (2000), para quem o desenvolvimento económico só é autêntico quando promove a transformação estrutural da sociedade e não se limita à acumulação passiva de activos. Assim, um terreno que permanece ocioso não é apenas um desperdício económico, mas uma contradição à função social da terra, princípio que também encontra eco em Hernando de Soto (2001), quando defende que a riqueza depende da transformação dos activos em capital produtivo.

2. O Contrato como Instrumento de Responsabilização

O Decreto não se limita a enunciar boas intenções; ele fornece mecanismos concretos para transformar promessas em compromissos.

O Artigo 8.º exige a apresentação de um Plano de Aproveitamento do Terreno, que descreva obras, fases de execução e valor mínimo de investimento. Trata-se de um contrato moral e jurídico entre concessionário e Estado.

O Artigo 19.º estabelece que o contrato contenha cláusulas de finalidade, obrigações, extinção e reversão. É aqui que se define, com clareza, se a terra servirá o “interesse público e o desenvolvimento económico e social” ou se será capturada pela especulação.

David Harvey (2005), ao analisar o urbanismo contemporâneo, alerta para os riscos da mercantilização do espaço urbano e da terra como mero activo financeiro. A previsibilidade contratual do Decreto n.º 84/25 é, portanto, um antídoto contra esta tendência, ao vincular a concessão a metas produtivas concretas.

3. Reversão por Inactividade: Uma Medida Necessária

Para evitar que a concessão se torne uma oportunidade perdida, as entidades devem usar a prerrogativa do Artigo 19.º para definir prazos claros de execução:

Fase 1 – Início da Execução (24 meses): o concessionário deve provar o arranque efectivo das actividades. A inactividade injustificada aciona o aviso de reversão.

Fase 2 – Execução Substancial (5 anos): parte significativa do investimento (ex.: 50%) deve estar concluída. O incumprimento legitima a extinção e reversão do direito.

Esta proposta está em consonância com a visão de Douglass North (1990), que argumenta que instituições fortes não são apenas leis no papel, mas regras aplicadas que reduzem a incerteza e incentivam comportamentos produtivos.

4. Benefícios da Aplicação Rigorosa

Uma aplicação rigorosa do Decreto traria impactos estruturais:

Desincentivo à especulação: reduz o valor da terra como activo improdutivo.

Promoção do desenvolvimento real: gera investimentos alinhados ao interesse público.

Segurança jurídica: fortalece a confiança de investidores sérios e reduz arbitrariedades.

De acordo com Joseph Stiglitz (2002), o desenvolvimento sustentável exige transparência, previsibilidade e um equilíbrio entre o interesse privado e o interesse público. O Decreto n.º 84/25, quando aplicado de forma rigorosa, contribui precisamente para esse equilíbrio.

Finalmente, é importante referir que o Decreto Presidencial n.º 84/25 tem potencial para ser mais do que uma reforma administrativa: pode representar uma verdadeira transformação no modelo de aproveitamento da terra em Angola. Para tal, é necessário que a concessão deixe de ser apenas um acto formal de atribuição de direitos e passe a ser uma obrigação efectiva de produção, investimento e contribuição para o progresso nacional.

A lição é clara: a terra, quando utilizada de forma estratégica, é motor de desenvolvimento; quando abandonada, converte-se em símbolo de desperdício e desigualdade. Entre a concessão e a acção, deve sempre prevalecer a acção.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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