Análise
A nova primavera da Geração Z: entre Katmandu e Antananarivo

1. Introdução: a juventude no centro da contestação
As últimas semanas foram marcadas por dois acontecimentos que, apesar de geograficamente distantes, possuem fortes semelhanças na sua essência: os protestos no Nepal e em Madagáscar. Ambos os países enfrentaram mobilizações massivas que resultaram em dezenas de mortos, centenas de feridos e mudanças políticas significativas, incluindo a demissão de primeiros-ministros.
Mais do que episódios isolados, trata-se de sintomas de uma transformação global: a emergência da Geração Z como força política e social que desafia elites corroídas pela corrupção, pela ineficiência e pela desconexão com as necessidades reais dos cidadãos.
Como sublinha Castells (2013), “os movimentos em rede refletem a capacidade da sociedade em desafiar as estruturas de poder e criar novos espaços de autonomia”. Esta perspetiva permite compreender os paralelos entre Katmandu e Antananarivo.
2. Nepal: quando o silêncio digital se transforma em grito colectivo
No Nepal, os protestos eclodiram após a decisão governamental de proibir 26 redes sociais, entre as quais o WhatsApp, Facebook e Instagram. O argumento oficial era combater notícias falsas, discurso de ódio e fraudes digitais. Mas, para os jovens, a medida representou uma clara tentativa de silenciamento das denúncias de corrupção e má governação.
A repressão estatal foi dura: 30 mortos e mais de 1.000 feridos em apenas dois dias de violência. Edifícios governamentais e casas de políticos foram incendiados, incluindo a do próprio primeiro-ministro Khadga Prasad Oli, que acabou por renunciar.
Para Howard e Hussain (2013), “as redes sociais não criam revoluções, mas aceleram os processos de mobilização e permitem que os protestos escapem ao controlo dos regimes”. O Nepal confirma esta tese: a tentativa de desligar as redes apenas multiplicou o sentimento de revolta e transformou o silêncio digital num grito colectivo nas ruas.
3. Madagáscar: entre cortes de energia e a crise de confiança política
Em Madagáscar, a faísca que acendeu os protestos foi mais quotidiana: cortes constantes de água e de electricidade. Contudo, o que começou como uma reivindicação por melhores condições de vida rapidamente evoluiu para um movimento mais amplo contra a corrupção e a má governação.
As forças de segurança responderam com violência, resultando em 22 mortos e centenas de feridos. O presidente Andry Rajoelina anunciou a demissão do governo, incluindo o primeiro-ministro Christian Ntsay, mas os manifestantes consideraram a medida insuficiente, acusando o chefe de Estado de não assumir responsabilidade directa pela repressão.
Como lembra Rosanvallon (2008), “a crise da democracia representativa resulta da incapacidade dos governantes em traduzir a voz do povo em acção concreta”. Este diagnóstico aplica-se integralmente ao caso malgaxe, onde as instituições políticas falharam em canalizar as frustrações populares para soluções eficazes.
4. Pontos de convergência: as semelhanças entre Katmandu e Antananarivo
Os casos do Nepal e de Madagáscar permitem identificar um conjunto de similaridades reivindicativas que caracterizam esta nova onda de protestos globais:
1. Indignação com a corrupção – A percepção de que as elites capturaram o Estado em benefício próprio é o principal combustível da revolta. Transparency International (2023) reforça que “a corrupção mina a confiança, perpetua desigualdades e enfraquece a democracia”.
2. O papel central das redes sociais – No Nepal, a proibição digital serviu como catalisador da revolta; em Madagáscar, as redes foram o espaço de denúncia e mobilização. É a confirmação de que a arena política contemporânea é híbrida, ocupando simultaneamente ruas e plataformas digitais.
3. Rejeição das estruturas políticas tradicionais – A juventude não se revê em partidos envelhecidos, dominados por nepotismo e carreirismo. Trata-se de uma exigência por lideranças independentes, competentes e éticas.
4. Violência como consequência, não como essência – Saques e incêndios marcaram os protestos, mas os líderes juvenis insistem que estes actos não representam a essência do movimento, e sim infiltrações oportunistas. Tilly (2006) recorda que “a acção colectiva pode ser sequestrada, mas a legitimidade das reivindicações mantém-se”.
5. A Primavera Digital da Geração Z
As mobilizações no Nepal e em Madagáscar remetem inevitavelmente para a Primavera Árabe de 2011, mas com uma nuance decisiva: não se trata apenas de derrubar regimes, mas de transformar modelos de governação.
A Geração Z – jovens digitais, conectados e críticos – não aceita passivamente velhos sistemas políticos marcados pela corrupção e pelo distanciamento das necessidades sociais. Trata-se de uma geração que, como afirma Bauman (2017), “vive numa condição líquida em que o futuro se tornou incerto; daí a urgência em exigir mudanças imediatas”.
Diferentemente de movimentos passados, a Primavera Digital da Geração Z não tem fronteiras fixas: é global, replicável e inspirada em símbolos comuns de justiça social, integridade e igualdade.
6. Alerta para as outras nações: o risco de Angola e além
O que se passou em Katmandu e Antananarivo deve servir de aviso para outras nações com problemas semelhantes. A combinação de corrupção endémica, desigualdade social, desemprego juvenil e descrédito das instituições é um terreno fértil para convulsões sociais.
Países africanos, incluindo Angola, enfrentam dilemas paralelos. A juventude angolana, marcada por altos níveis de desemprego, dificuldades de acesso a serviços básicos e frustrações perante casos de má governação, partilha os mesmos sentimentos de exclusão que hoje mobilizam os jovens no Nepal e em Madagáscar.
Como alerta Huntington (1993), “quando as expectativas sociais crescem mais depressa do que a capacidade do Estado em satisfazê-las, a instabilidade política torna-se inevitável”. Ignorar esta realidade é abrir caminho para uma eventual explosão social em contextos semelhantes.
7. Conclusão: escutar antes que seja tarde
Do Nepal a Madagáscar, a mensagem é inequívoca: a juventude já não aceita ser espectadora passiva de regimes desacreditados. A Primavera Digital da Geração Z é um movimento difuso, mas poderoso, que exige ética, transparência e inclusão como fundamentos de uma nova ordem política.
Cabe agora aos líderes políticos escolher: ou ouvem e reformam-se, adaptando os sistemas às exigências da nova geração, ou arriscam-se a ver as ruas e as redes sociais transformarem-se em parlamentos alternativos, onde a indignação colectiva legisla com a força dos números e a urgência da mudança.