Análise
Municípios ricos, povos pobres: a receita que some no caminho da Justiça Fiscal

O debate sobre a colecta e gestão das receitas municipais em Angola continua a ser um dos pontos mais sensíveis no processo de reforma do Estado e de construção de um modelo de governação mais próximo do cidadão. Entre o modelo desconcentrado, actualmente em vigor, e o modelo descentralizado, previsto constitucionalmente mas ainda não implementado, persiste uma realidade comum: nenhuma receita arrecadada permanece integralmente no município que a gera.
1. O Modelo Desconcentrado: Administração sem Autonomia
No regime desconcentrado, em funcionamento desde a independência, as Administrações Municipais constituem meros prolongamentos da Administração Central. Não possuem personalidade jurídica própria, logo não dispõem de autonomia patrimonial ou financeira.
O artigo 201.º da Constituição da República de Angola (CRA) é explícito ao definir que as administrações locais do Estado existem para executar políticas públicas definidas pelo poder central. Isso significa que, mesmo quando arrecadam receitas, taxas, emolumentos, licenças e multas, essas verbas são canalizadas para a Conta Única do Tesouro e posteriormente redistribuídas segundo critérios centralmente estabelecidos.
Segundo André Mendes de Carvalho (2013), “as administrações municipais desconcentradas funcionam mais como estruturas de execução do que como verdadeiros centros de decisão, o que perpetua a sua dependência estrutural em relação ao poder central”. Ou seja, o município colecta, mas não decide sobre o destino das receitas, ficando reduzido à condição de mero gestor de subsídios transferidos pelo Orçamento Geral do Estado (OGE).
2. A Tutela dos Governos Provinciais: Equidade ou Centralização?
A disparidade entre municípios é gritante. Enquanto cidades como Luanda, Lubango, Benguela, Lobito ou até mesmo Calumbo conseguem gerar receitas significativas através de actividades comerciais e urbanísticas, muitos municípios do interior mal arrecadam recursos suficientes para assegurar serviços mínimos.
Nesse quadro, os Governos Provinciais desempenham o papel de tutores financeiros, supervisionando a gestão das administrações municipais e redistribuindo receitas em nome da equidade e da coesão territorial.
Como salienta José Octávio Serra Van-Dúnem (2007), “a redistribuição de recursos entre territórios desiguais é um imperativo de justiça social, mas quando realizada sob tutela excessiva pode transformar-se em mecanismo de controlo político-partidário”. Em Angola, este risco é evidente: os critérios de redistribuição nem sempre são transparentes, abrindo espaço para práticas discricionárias e clientelistas.
A tutela, que deveria assegurar solidariedade intermunicipal, frequentemente funciona como instrumento de reafirmação da centralização, colocando os municípios numa posição de subordinação total ao poder provincial.
3. O Modelo Descentralizado: Autarquias com Limites Constitucionais
A Constituição prevê, no artigo 217.º, a criação das autarquias locais, entidades dotadas de património e finanças próprias. Este modelo marca uma ruptura em relação ao actual sistema, conferindo ao município a qualidade de sujeito de direito financeiro.
No entanto, mesmo aqui há limites. O artigo 218.º da CRA determina que a gestão financeira das autarquias será regulada por lei e que deverá existir um fundo de equilíbrio financeiro para assegurar a justa repartição de recursos entre autarquias mais ricas e mais pobres.
Ou seja, mesmo com a descentralização, nenhuma receita permanecerá integralmente no município que a gerou. Parte dela será canalizada para fundos de redistribuição nacional, em nome do princípio da solidariedade e da coesão territorial.
Segundo Benvindo Chimboté (2019), “a descentralização financeira em Angola deve ser entendida não como apropriação absoluta de receitas locais, mas como criação de um sistema equilibrado, onde a autonomia municipal coexista com a solidariedade nacional”.
4. Entre a Norma e a Prática: A Política da Redistribuição
Na prática, a questão das receitas municipais em Angola revela um fosso entre a norma constitucional e a realidade política.
No modelo desconcentrado, os municípios sobrevivem de transferências do OGE, sem capacidade real de planeamento financeiro autónomo. No modelo descentralizado, corre-se o risco de manter a lógica de dependência, agora sob a forma de fundos de equilíbrio, se não forem definidos critérios objectivos, transparentes e auditáveis para a redistribuição.
Autores como Boaventura de Sousa Santos (2005) têm defendido que a descentralização só é efectiva quando existe “capacidade de decisão sobre a utilização de recursos próprios”, algo que em Angola ainda está por se materializar.
Enquanto isso, a redistribuição, em vez de ser um mecanismo de justiça social, continua a ser utilizada como instrumento político, reforçando dependências em vez de as superar.
5. O Caminho para uma Descentralização Real
O dilema não está na existência da redistribuição, esta é constitucionalmente inevitável, mas sim na sua qualidade, transparência e justiça. Para que a descentralização não seja apenas uma promessa adiada, são necessárias reformas profundas:
1. Definir critérios técnicos claros para a redistribuição, baseados em indicadores como população, nível de pobreza, extensão territorial e necessidades de infra-estrutura.
2. Garantir autonomia financeira mínima, permitindo que os municípios retenham uma parte significativa das receitas próprias antes da redistribuição.
3. Instituir mecanismos de transparência e fiscalização, assegurando que os fundos redistribuídos sejam aplicados em serviços públicos essenciais e não desviados.
4. Reforçar a capacidade arrecadatória local, modernizando sistemas tributários municipais e incentivando actividades económicas geradoras de receita.
Finalmente, é importante referir que a Constituição angolana é inequívoca: tanto no modelo desconcentrado como no descentralizado, nenhuma receita pertence integralmente ao município que a gera. No primeiro caso, por ausência de autonomia; no segundo, pelo princípio constitucional da solidariedade e pela existência de fundos de equilíbrio financeiro.
O desafio não é jurídico, mas político. Enquanto a redistribuição continuar a ser gerida de forma centralizada e pouco transparente, os municípios permanecerão reféns financeiros do poder central.
Como bem sintetiza Van-Dúnem (2014), “a descentralização sem autonomia financeira não passa de uma retórica vazia”. Para que Angola conheça uma verdadeira revolução democrática e administrativa, será necessário transformar a solidariedade constitucional em equidade prática, devolvendo aos municípios a capacidade real de decidir sobre os recursos que produzem.