Opinião
Administração Pública ou Comité Partidário? A captura política dos municípios angolanos
A promessa de modernizar o Estado angolano através da descentralização administrativa ganhou novo fôlego com a recente aprovação da nova Divisão Político-Administrativa (DPA). Com ela, surgem novas províncias, novos municípios e, teoricamente, uma maior proximidade entre o Estado e os cidadãos. No entanto, essa expansão territorial, que poderia significar um avanço na consolidação da democracia local, corre o risco de ser capturada por interesses partidários e clientelistas, se não for acompanhada por uma profunda reforma da estrutura funcional da Administração Pública Local.
Ao invés de representar uma oportunidade para profissionalizar a gestão municipal e tornar a administração mais eficiente e técnica, a nova divisão está a ser interpretada, em muitos casos, como uma oportunidade para multiplicar cargos comissionados – cargos esses, muitas vezes, atribuídos com base em interesses políticos e não em competência técnica. O que era para ser uma resposta às exigências do desenvolvimento local ameaça tornar-se uma expansão do velho modelo de partidarização do aparelho do Estado.
1. A Explosão dos Comissionados e o Recuo da Meritocracia
Em muitas administrações municipais, a proporção de cargos comissionados supera largamente a dos quadros técnicos efectivos. Tais nomeações, em vez de serem excepções justificadas por necessidades de liderança e assessoramento estratégico, tornaram-se a regra para a ocupação dos postos-chave da gestão local. Os cargos comissionados são atribuídos sem concurso público, e a sua ocupação baseia-se, muitas vezes, em relações de confiança política, amizade ou filiação partidária.
Di Pietro (2013) alerta que a livre nomeação de comissionados deve restringir-se a funções de chefia, sob pena de violar o princípio da impessoalidade. Porém, no contexto angolano, essa prática tem sido distorcida: nomeia-se para funções técnicas e operacionais pessoas sem formação adequada, substituindo a competência pelo compadrio político.
Este fenómeno leva à erosão da profissionalização da Administração Pública. Como afirma Weber (1922), o Estado moderno deve funcionar com base em regras impessoais e burocráticas, onde o mérito e a competência sejam os principais critérios de recrutamento. Quando os cargos são ocupados por indicação partidária, a administração torna-se uma extensão dos comités políticos, minando a sua legitimidade, eficiência e autonomia técnica.
2. Novos Municípios, Velhas Práticas: A Repetição dos Vícios
Com a nova DPA, espera-se o surgimento de dezenas de novos municípios, cada um com a sua própria estrutura administrativa, orçamento e capacidade de planeamento. Em teoria, isso permitiria um melhor acompanhamento das necessidades locais, maior autonomia na tomada de decisões e uma gestão mais próxima do cidadão.
Todavia, se a cultura organizacional que predomina nas administrações actuais não for transformada, haverá apenas uma reprodução em escala dos vícios antigos. A criação de novos municípios pode resultar num inchaço da máquina administrativa, com milhares de novos cargos comissionados criados para satisfazer acordos políticos, gerando elevados custos ao erário público e comprometendo a qualidade da despesa.
Filgueiras (2009) chama a atenção para o facto de que “uma administração dominada por interesses privados e lógicas políticas paralisa a máquina estatal, transforma a gestão pública em balcão de negócios e compromete os princípios republicanos”. Em Angola, esta lógica é visível nos municípios onde projectos públicos são abandonados a cada novo executivo, funcionários concursados são preteridos por comissionados sem formação, e os serviços ao cidadão perdem consistência e continuidade.
3. Consequências da Captura Política da Administração Pública Local
A partidarização da Administração Local gera uma série de consequências estruturais e éticas, entre as quais se destacam:
Descontinuidade administrativa: cada mudança política implica uma nova nomeação em massa, o que inviabiliza a continuidade de políticas públicas e enfraquece a memória institucional;
Desmotivação dos quadros técnicos: os funcionários efectivos, que muitas vezes passaram por concursos e formação específica, são excluídos dos cargos de liderança e submetidos a gestores com menor competência;
Corrupção e nepotismo: a ausência de critérios técnicos objectivos para nomeações abre espaço para favores, tráfico de influência e corrupção administrativa;
Desconfiança da população: a população começa a ver a administração como um aparelho dominado por interesses privados e não como uma estrutura ao seu serviço.
4. O Que Fazer? Caminhos para a Profissionalização da Gestão Municipal
É preciso inverter urgentemente esse cenário. A expansão da estrutura administrativa do país só será legítima se for acompanhada por uma reforma profunda da forma como se gere a coisa pública a nível local. Algumas propostas concretas incluem:
Estabelecer por lei limites rigorosos ao número de cargos comissionados em cada município, baseando-se em percentagens controladas e funções bem definidas;
Institucionalizar concursos públicos obrigatórios para todos os cargos técnicos e administrativos;
Criar uma carreira nacional de gestor público municipal, com concursos abertos, formação específica e avaliações periódicas de desempenho;
Reforçar os órgãos de controlo externo, como o Tribunal de Contas e as inspecções administrativas, para fiscalizar a legalidade das nomeações e da gestão dos recursos;
Valorizar os servidores públicos efectivos, com incentivos à formação contínua, mobilidade interna e promoção baseada no mérito.
5. Conclusão: O Município Não É um Comité Político
A nova divisão político-administrativa de Angola representa uma oportunidade única para a afirmação do Estado democrático e do poder local eficaz. No entanto, se os municípios continuarem a ser instrumentos de acomodação partidária, pouco ou nada mudará para os cidadãos comuns. A captura política da Administração Pública é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento e à boa governação.
Como lembra Boaventura de Sousa Santos (2003), “a democratização do Estado exige não apenas eleições livres, mas também um aparelho administrativo profissional, técnico e transparente, capaz de responder às necessidades da sociedade”.
Enquanto os municípios forem tratados como prémios de guerra política, os serviços continuarão ineficientes, os quadros técnicos serão desmotivados, e o cidadão permanecerá à margem de um Estado que deveria estar ao seu serviço.
