Opinião
União Africana: um gigante com pés de barro?
A ascensão do Presidente João Lourenço à liderança da União Africana (UA) representa uma oportunidade histórica para repensar o modelo de governação continental. O actual modelo da UA, baseado na presidência rotativa, tem demonstrado limitações na condução de políticas de longo prazo, na promoção da estabilidade e na integração económica efectiva do continente. Embora tenha sido concebido para assegurar representatividade equitativa entre os Estados-membros, esse sistema dificulta a formulação de estratégias sustentáveis, pois cada presidente acumula a liderança da organização com a chefia do seu próprio país, criando um claro conflito de interesses.
A falta de continuidade administrativa compromete iniciativas estratégicas e impede que projectos essenciais para o desenvolvimento africano avancem com a consistência necessária. Países como o Ruanda e o Senegal podem priorizar políticas de industrialização e inovação, enquanto outros, como o Sudão do Sul e a Somália, estão focados na resolução de conflitos internos. Como resultado, não há uma linha de acção homogénea que impulsione o continente como um bloco unido e forte no cenário internacional.
Com um olhar atento para modelos funcionais de governação regional, como a União Europeia (UE) e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), João Lourenço tem diante de si a possibilidade de propor um novo modelo de governo para a UA. Um modelo que vá além da mera coordenação política e avance para uma estrutura governativa continental, baseada na integração económica, segurança cooperativa e governação eficiente.
Mas como transformar a União Africana num bloco verdadeiramente funcional e competitivo no cenário global? A resposta pode estar na aplicação das teorias organizacionais para a construção de uma governação continental eficiente e sustentável.
1. A Teoria Organizacional como Pilar da Integração Africana
A construção de qualquer estrutura governativa eficiente deve basear-se em princípios organizacionais sólidos. Aplicando as principais teorias organizacionais, podemos conceber um modelo sustentável para África.
✅ Teoria da Contingência – Defende que cada organização deve adaptar-se à sua realidade específica (Burns & Stalker, 1961). No contexto africano, significa que o modelo de governação continental deve ser flexível e respeitar as particularidades de cada nação, sem impor uma estrutura rígida e padronizada.
✅ Teoria da Dependência de Recursos – Segundo Pfeffer & Salancik (1978), as organizações precisam de reduzir a sua dependência de recursos externos para garantir autonomia. África ainda depende economicamente das suas antigas colónias e de instituições financeiras internacionais. Para uma governação eficaz, o continente precisa de fortalecer cadeias produtivas internas e criar um mercado continental robusto.
✅ Teoria Institucional – Defende que as organizações devem seguir padrões globais sem perder a sua identidade própria (DiMaggio & Powell, 1983). Assim, um novo modelo para a UA deve aprender com a União Europeia e a ASEAN, mas sem comprometer a soberania política e cultural dos países africanos.
✅ Teoria dos Sistemas – Enxerga as organizações como sistemas interdependentes (Bertalanffy, 1968). Para ser eficaz, um governo continental africano deve funcionar de forma integrada, interligando economia, política, segurança e inovação tecnológica.
2. Uma Nova Proposta de Governação para a União Africana
João Lourenço pode propor um modelo híbrido de governação continental, que combine integração económica, governação partilhada e segurança unificada, sem comprometer a soberania dos Estados-membros.
2.1. Estrutura Política e Governativa
1️⃣ Presidência Independente da União Africana → O líder da UA deveria ser eleito por sufrágio indirecto pelos Estados-membros, com um mandato fixo de cinco anos, sem ocupar simultaneamente o cargo de presidente de um país. Isso garantiria neutralidade, continuidade e foco exclusivo nos interesses do continente.
2️⃣ Parlamento Africano com Poderes Reais → Diferente do actual Parlamento Pan-Africano, este órgão teria poderes legislativos vinculativos, criando leis continentais em áreas estratégicas, como comércio e mobilidade populacional.
3️⃣ Conselho Executivo da União Africana → Funcionaria como um Governo da União Africana, composto por representantes eleitos pelos Estados-membros, responsável pela implementação de políticas continentais.
4️⃣ Conselho Africano de Segurança e Defesa → Criaria uma Força Africana de Paz, garantindo intervenção rápida em crises, golpes de Estado e conflitos regionais, promovendo estabilidade e soberania continental.
2.2. Estrutura Económica e de Desenvolvimento
5️⃣ Banco Central Africano e Moeda Única (ECO) → Reduziria a dependência do dólar e do euro, promovendo estabilidade económica e integração comercial.
6️⃣ Plano de Industrialização e Educação → Inspirado no modelo da China e da ASEAN, priorizaria infra-estruturas, tecnologia e qualificação profissional, aumentando a competitividade do continente.
7️⃣ Acordo de Livre Comércio Africano (AfCFTA) Fortalecido → Embora já implementado, necessita de maior reforço institucional e logístico para eliminar barreiras alfandegárias e aumentar o comércio intra-africano.
3. Viabilidade e Sustentabilidade do Modelo
A implementação de um novo modelo de governação continental enfrenta desafios políticos e estruturais, mas pode ser viabilizada a partir de três pilares estratégicos:
✔ Governação Eficiente → Baseada na transparência, participação democrática e combate à corrupção. Segundo Moravcsik (2002), a União Europeia só se tornou funcional quando as suas instituições ganharam credibilidade e independência política.
✔ Autonomia Económica → Fortalecer a industrialização e o mercado interno, reduzindo a dependência externa. A ASEAN demonstrou que a integração económica é possível sem comprometer a soberania nacional (Severino & Menon, 2019).
✔ Segurança Continental → A criação de uma política de defesa comum garantirá estabilidade política e segurança para investimentos, reduzindo golpes de Estado e intervenções estrangeiras.
Finalmente, a presidência de João Lourenço na União Africana pode ser um momento decisivo para redefinir o futuro do continente.
Se adoptado, um novo modelo de governação continental africana poderá transformar África num bloco global forte, competitivo e auto-suficiente, promovendo maior desenvolvimento, segurança e autonomia para os seus povos.
A pergunta que fica é: João Lourenço e os demais líderes africanos terão coragem e visão estratégica para propor essa mudança, ou continuarão presos às limitações do modelo actual?