Análise

Tribunal de Contas e a conivência com desperdícios públicos em Angola

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O papel dos tribunais de contas no contexto da Administração Pública contemporânea é amplamente reconhecido como essencial para a promoção da responsabilização, transparência e eficiência na gestão de recursos públicos. Segundo Pollitt (2013), “a auditoria e o controlo interno são pilares fundamentais para garantir a responsabilização no sector público e prevenir o desperdício e a corrupção sistémica”.

Em Angola, a relevância deste debate é ainda mais crítica, considerando a necessidade de acelerar o desenvolvimento económico, reduzir o desperdício de recursos e fortalecer a confiança pública nas instituições. Contudo, surge uma questão estrutural: até que ponto o Tribunal de Contas consegue atuar de forma independente, sem se submeter a interesses políticos, e quais são as consequências da sua configuração legal sobre a capacidade de suspender, indeferir ou anular despesas públicas irregulares.

1. O papel dos Tribunais de Contas no contexto internacional

Em diferentes sistemas de governação, tribunais de contas e órgãos de auditoria desempenham funções estratégicas de controlo externo, sendo instrumentos fundamentais de governança pública.

No Brasil, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem competência para suspender contratos e obras públicas considerados irregulares. O caso do programa “Minha Casa Minha Vida”, em que foram identificadas sobrepreço e falhas na execução contratual, ilustra como o controlo externo pode atuar como mecanismo corretivo de legalidade e eficiência (Bergmann e Willmer, 2017).

Em Portugal, o Tribunal de Contas determinou a devolução de subsídios pagos indevidamente, reforçando a accountability financeira e a observância rigorosa dos princípios de legalidade e economicidade (TC, 2020).

Nos Estados Unidos, o Government Accountability Office (GAO) utiliza auditorias de desempenho e financeiras para bloquear gastos federais ineficazes, demonstrando a centralidade do controlo externo no aprimoramento da eficiência administrativa.

Na Índia e África do Sul, órgãos de auditoria desempenham função similar, questionando contratos irregulares e despesas excessivas, protegendo o erário público de práticas fraudulentas ou ineficientes.

Como enfatizam Romzek e Johnston (2005), “a fiscalização no sector público não é apenas uma questão de legalidade, mas também de eficiência, integridade e legitimidade perante a sociedade”, destacando que o controlo externo é intrinsecamente ligado à governança pública moderna.

2. O Tribunal de Contas em Angola: competências e limitações

Em Angola, o Tribunal de Contas, regulado pela Lei n.º 3/06, de 11 de Abril, exerce funções de controlo superior das contas públicas, com competência para:

1. Fiscalizar receitas e despesas do Estado, empresas públicas e autarquias locais;

2. Avaliar a legalidade, economicidade e eficiência das operações financeiras;

3. Emitir pareceres sobre a conformidade das despesas com o orçamento aprovado;

4. Recomendar correções, suspensões ou, em casos de flagrante ilegalidade, a anulação de despesas irregulares.

Todavia, a prática demonstra lacunas estruturais que comprometem a efetividade do controlo:

Independência limitada: O Artigo 13 da Lei n.º 3/06 determina que o Presidente e os juízes conselheiros do Tribunal de Contas são nomeados pelo Presidente da República, sem mecanismos de mandatos interpolados ou critérios de equilíbrio político. Esta configuração reduz a autonomia do órgão e aumenta o risco de conivência com práticas irregulares ou desperdícios flagrantes.

Dificuldade em suspender despesas: Apesar de identificadas irregularidades, o tribunal muitas vezes não consegue suspender ou anular gastos excessivos ou ilegais, devido à dependência política e à falta de mecanismos institucionais de coerção direta sobre a execução orçamental.

Fragilidade do enforcement: Ao contrário de modelos internacionais em que o tribunal possui poderes coercitivos independentes, em Angola a execução das recomendações depende do próprio Executivo, criando um ciclo de inércia administrativa e tolerância a irregularidades.

Segundo Kaufmann et al. (2011), sistemas de controlo financeiro eficazes exigem mandatos independentes, proteção institucional contra pressões políticas e mecanismos claros de accountability, elementos que ainda são insuficientes no contexto angolano.

3. Conivência e desperdício na Administração Pública Angolana

A experiência recente evidencia casos de desperdício flagrante de recursos públicos, incluindo:

Gastos milionários em obras públicas parcialmente concluídas;

Contratos de consultoria ou fornecimento superfaturados;

Despesas administrativas sem justificação clara no orçamento aprovado;

Festividades públicas de grande escala, como as celebrações dos 50 anos da independência, com custos elevados e questionáveis face às prioridades sociais;

Viagens protocolares internacionais de órgãos governamentais e titulares do Executivo, muitas vezes desproporcionais face à natureza do evento;

Aquisição de viaturas de alta cilindrada para fins protocolares, representando um gasto significativo e controverso do ponto de vista da economicidade.

Estes exemplos ilustram a limitação do Tribunal de Contas em atuar de forma preventiva, permitindo que decisões financeiras irregulares avancem até serem auditadas. A nomeação centralizada do Presidente do Tribunal contribui para uma conivência estrutural, pois a autonomia do órgão está condicionada à relação com o Executivo.

Como ressalta Ferreira (2018), “a fiscalização deve ser concebida como um instrumento que equilibre rigor legal e capacidade de apoiar políticas estratégicas, evitando que o controlo se transforme em entrave ou em mecanismo de legitimação de desperdícios”.

4. O dilema: fiscalização rigorosa versus desenvolvimento

A experiência internacional e angolana revela um dilema central na Administração Pública:

1. O controlo externo protege contra desperdício, corrupção e ilegalidades, garantindo transparência e legitimidade das ações governamentais;

2. Contudo, em contextos de urgência social ou política, pode restringir investimentos estratégicos, especialmente quando a legislação é rígida ou os tribunais carecem de mecanismos independentes de execução.

Pollitt e Bouckaert (2017) enfatizam que “o controlo e a accountability no sector público devem ser instrumentos para aprimorar desempenho e não apenas mecanismos de punição”. Uma despesa impopular, se estratégica e legal, deve ser apoiada; mas se ilegal ou ineficiente, precisa ser prontamente suspensa. Este equilíbrio é crucial para fortalecer a governança pública sem comprometer o desenvolvimento.

Finalmente, é importante reconhecer que os tribunais de contas desempenham papel central na proteção do interesse público, assegurando legalidade, moralidade e eficiência. No entanto, em Angola, a dependência política na nomeação do Presidente e conselheiros limita a efetividade do órgão, contribuindo para desperdícios estruturais e conivência com irregularidades, incluindo gastos excessivos em festividades, viagens protocolares e viaturas de alta cilindrada.

Para construir uma administração pública mais transparente e eficiente, é necessário:

Reformular a composição e os mandatos do Tribunal de Contas, garantindo autonomia real;

Criar mecanismos de suspensão e anulação de despesas independentes do Executivo;

Fortalecer a cultura de accountability e governança pública, alinhada a boas práticas internacionais.

Como sintetizam Osborne e Gaebler (1992), “governos eficazes são aqueles que sabem combinar controlo, inovação e responsabilidade pública de forma harmoniosa”. Angola precisa de um Tribunal de Contas capaz de cumprir esta missão, protegendo os recursos públicos sem se tornar um obstáculo ao desenvolvimento.

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