Opinião
Serviços notariais em Angola: um Estado à margem da legalidade digital?
1. Introdução: O Papel Notarial na Arquitectura da Segurança Jurídica
Num Estado de Direito, os serviços notariais não são apenas um canal de autenticação documental. São, antes, instituições de segurança jurídica preventiva, que garantem que os actos civis, comerciais e patrimoniais sejam formalizados com legalidade, transparência e fé pública. O notário não é um mero carimbador de documentos; é, conforme descreve Henri Capitant, “o guardião silencioso da paz jurídica entre os cidadãos”.
Todavia, em Angola, este ideal encontra-se fragilizado. A realidade quotidiana do sistema notarial angolano é marcada por atrasos sistemáticos, fragilidade institucional, corrupção estrutural e exclusão territorial. Vivemos ainda presos à lógica do papel, das filas intermináveis, dos intermediários informais e da morosidade incompatível com os desafios de uma governação moderna e centrada no cidadão.
2. Diagnóstico: As Múltiplas Vulnerabilidades do Sistema Notarial Angolano
1. Burocracia Arcaica e Lentidão Operacional
As práticas notariais em Angola continuam a seguir um modelo artesanal, anacrónico e manual. Os documentos são redigidos em papel, arquivados fisicamente e assinados presencialmente. Este sistema, além de vulnerável a fraudes e perdas, gera atrasos significativos. É comum o cidadão aguardar semanas, ou até meses, para obter uma simples certidão autenticada.
Max Weber, ao teorizar sobre a racionalidade burocrática, advertiu que a burocracia, quando não controlada, “pode tornar-se um fim em si mesma, convertendo a eficiência em ineficiência”.
2. Centralização Excessiva e Acesso Desigual
Os cartórios concentram-se nas capitais provinciais, em especial Luanda, deixando os municípios e comunas sem acesso regular a serviços notariais. Esta realidade impõe custos elevados de deslocação, prolonga a tramitação de processos e acentua a exclusão jurídica das populações rurais.
Segundo o Relatório do Banco Mundial sobre Governação Local (2020), a descentralização de serviços jurídicos e administrativos é essencial para garantir cidadania plena e acesso equitativo à justiça.
3. Corrupção e Intermediação Informal
A ausência de fiscalização efectiva abre espaço para a actuação de “mixeiros”, facilitadores que exigem valores extraoficiais para acelerar ou desbloquear processos. Essa prática é sintoma de um sistema que perdeu a sua autoridade moral e institucional.
Como afirma Luís de Sousa, investigador da Universidade de Lisboa, “a corrupção floresce onde a transparência é mínima, a responsabilidade é frágil e os incentivos à integridade são inexistentes”.
4. Inexistência de Notariado Digital e Atraso Tecnológico
Enquanto países como:
Estónia oferecem serviços notariais totalmente digitais e integrados ao sistema de identidade electrónica nacional;
Brasil opera com a plataforma e-Notariado, permitindo a lavratura de escrituras por videoconferência com certificação digital;
Portugal dispõe do Balcão Único do Prédio e cartórios online, interoperando com serviços fiscais, judiciais e de registo;
Angola continua sem uma base legal para assinaturas digitais, sem plataforma unificada e com livros físicos expostos à deterioração, extravio ou falsificação.
5. Défice de Formação Técnica e Actualização Jurídica
A maioria dos funcionários dos cartórios carece de formação contínua em Direito Notarial, Ética Pública, Tecnologias de Informação e atendimento ao cidadão. Muitos desconhecem práticas modernas e normas internacionais.
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e jurista, defende que “a transformação do Estado exige o conhecimento profundo e contextualizado dos seus próprios mecanismos. Sem formação, não há inovação.”
6. Legislação Obsoleta e Incompatível com os Desafios Actuais
O Código do Notariado vigente em Angola está desfasado da realidade digital e da tendência crescente de descentralização. Falta-lhe articulação com o Regime Jurídico das Autarquias Locais, com as normas de protecção de dados e com os princípios da governação electrónica.
3. Boas Práticas Internacionais: Lições para Angola
Estónia:
Modelo de referência em governo digital. Todos os actos notariais podem ser realizados online através da ID Digital Nacional, com validade jurídica plena. O sistema está interligado com bancos, serviços fiscais e tribunais.
Brasil:
O e-Notariado, regulado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), permite actos como escritura pública, divórcio, reconhecimento de firma, procurações e testamentos serem lavrados online, com uso de videoconferência e certificação digital ICP-Brasil.
Portugal:
Com os seus Cartórios Notariais Desmaterializados, o cidadão pode aceder remotamente a serviços como certidões electrónicas, registo predial, alteração de propriedade e constituição de empresas em tempo real.
4. Caminhos para a Modernização do Notariado em Angola
A modernização dos serviços notariais não é apenas uma exigência administrativa. É uma reivindicação da cidadania, uma urgência da justiça e uma condição essencial para o desenvolvimento económico e institucional. Entre as medidas prioritárias, destacam-se:
1. Criação de uma Plataforma Nacional de Notariado Digital, com assinatura electrónica qualificada, videoconferência jurídica e arquivo digital.
2. Desconcentração e Municipalização dos Serviços Notariais, com criação de cartórios distritais e unidades móveis nas zonas rurais.
3. Actualização do Quadro Jurídico, revendo o Código do Notariado à luz da digitalização, descentralização e protecção de dados.
4. Capacitação Contínua de Notários e Auxiliares, em ética, direito, tecnologia de informação e atendimento humanizado.
5. Mecanismos Inteligentes de Fiscalização, usando inteligência artificial e big data para identificar padrões de corrupção, ineficiência ou práticas ilegais.
4. Considerações Finais: Pelo Direito de Aceder ao Direito
É tempo de romper com a ideia de que o serviço notarial é apenas uma herança colonial estática. Ele deve ser repensado como instrumento de cidadania, modernização do Estado e inclusão social. Um sistema notarial ineficaz é um obstáculo à segurança jurídica, à liberdade económica e à própria dignidade humana.
A Angola que sonha com desenvolvimento, justiça e modernidade precisa de um notariado que se reinvente, que se digitalize, que descentralize e que se humanize. Como lembra Norberto Bobbio, “a democracia não é apenas o governo da maioria, é o governo com regras, instituições e, sobretudo, com respeito pelos direitos”.
Não se trata de informatizar por informatizar. Trata-se de resgatar a confiança do cidadão no Estado e garantir que nenhum angolano, por mais distante ou humilde que seja, esteja excluído do direito de aceder ao direito.