Análise

Segurança jurídica e cidadania: o impacto da autonomia do sistema de registos em Angola

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O sistema de registos e notariado constitui uma das bases estruturantes da organização do Estado e da vida em sociedade, assegurando a autenticidade dos factos jurídicos e a segurança das relações civis e comerciais. Segundo o Banco Mundial (2017), “um sistema de registo moderno e acessível é determinante para a segurança da propriedade, para a inclusão social e para a criação de um ambiente de negócios competitivo”.

Em Angola, a Direcção Nacional de Identificação, Registos e Notariado (DNIRN) desempenha esse papel central, subordinada ao Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos (MJDH). Contudo, os actuais desafios de modernização administrativa, transformação digital e aumento da procura pelos serviços impõem uma reflexão sobre a pertinência de transformar esta Direção Nacional em Instituto Público autónomo, inspirado em experiências comparadas dentro da CPLP, nomeadamente Portugal e Brasil.

1. A Experiência Comparada: Portugal e Brasil

Em Portugal, a criação do Instituto dos Registos e Notariado (IRN, I.P.), em 2007, resultou de uma estratégia de modernização administrativa do Estado (PRACE). O IRN, dotado de autonomia administrativa e financeira, passou a gerir de forma integrada serviços essenciais como registo civil, predial, comercial, automóvel e notariado. De acordo com Carvalho (2015), “a autonomia administrativa do IRN permitiu ganhos de eficiência, redução de tempos de espera e maior investimento em plataformas digitais como o Balcão Único do Registo”.

Já no Brasil, o modelo é diferenciado. Os serviços de registo e notariado são exercidos por delegação do poder público a entidades privadas (cartórios), sob fiscalização rigorosa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Como refere Mello (2019), “o sistema cartorial brasileiro demonstra que a delegação pode resultar em eficiência e proximidade ao cidadão, desde que acompanhada de forte supervisão estatal para evitar abusos”.

Estes dois modelos oferecem lições importantes: Portugal demonstra a eficácia da autonomia institucional pública, enquanto o Brasil evidencia as vantagens da descentralização por via da delegação controlada.

2. A Possibilidade de um Modelo Híbrido para Angola

Inspirando-se nestas experiências, Angola poderia adoptar um modelo híbrido, que combine o melhor dos dois mundos:

1. Autonomia Pública (modelo Portugal)

Criação do Instituto Nacional de Identificação, Registos e Notariado (INIRN), com autonomia administrativa e financeira, garantindo maior flexibilidade na gestão dos recursos e capacidade de investimento em inovação tecnológica.

2. Delegação Parcial de Serviços (modelo Brasil)

Possibilidade de transferir alguns actos de menor complexidade (reconhecimento de assinaturas, autenticações simples, emissão de certidões) para delegações privadas licenciadas, sempre sob regulação e supervisão do INIRN e do MJDH.

3. Supervisão e Regulação Fortes

O INIRN funcionaria também como entidade reguladora, à semelhança do CNJ no Brasil, garantindo padrões de qualidade, ética e acessibilidade nos serviços delegados.

3. Benefícios Esperados

Modernização tecnológica: a autonomia permitirá maior investimento em soluções digitais, interoperabilidade entre sistemas e integração com outros serviços públicos. A ONU-Habitat (2020) defende que “a digitalização dos registos é condição essencial para o desenvolvimento de cidades inteligentes e para a inclusão social”.

Melhoria da qualidade dos serviços: a flexibilidade administrativa permitirá a contratação de técnicos especializados e a implementação de padrões de qualidade reconhecidos internacionalmente.

Sustentabilidade financeira: a gestão directa das receitas (emolumentos e taxas) possibilitará maior independência face ao Orçamento Geral do Estado.

Segurança jurídica e confiança dos investidores: conforme destaca De Soto (2000), “o registo de propriedade formal é um dos motores centrais do desenvolvimento económico, pois transforma bens em capital utilizável”.

Expansão territorial: através de delegações privadas licenciadas, será possível aumentar a cobertura em zonas rurais e periféricas, assegurando acesso universal.

4. Desafios a Considerar

Enquadramento legal adequado: a criação de um diploma específico que regule competências, financiamento, regime de pessoal e fiscalização será essencial.

Capacitação de recursos humanos: como alerta Pereira (2018), “a reforma institucional só se concretiza quando acompanhada de investimento em qualificação técnica e motivação dos quadros”.

Evitar abusos e desigualdades: o sistema deve assegurar preços regulados e acessíveis, impedindo que os serviços delegados se tornem elitizados.

Fiscalização robusta: sem um sistema de supervisão credível, a delegação pode gerar práticas ilícitas ou perda de confiança pública.

Finalmente, é importante referir que a transformação da Direção Nacional de Identificação, Registos e Notariado em Instituto Público autónomo com delegação parcial de serviços ao sector privado sob forte regulação estatal representa uma via estratégica para Angola reforçar a segurança jurídica, modernizar a administração pública e estimular o ambiente de negócios.

Este modelo híbrido, inspirado no IRN de Portugal e nos cartórios do Brasil, permitiria unir a autonomia pública à eficiência privada, assegurando ao mesmo tempo transparência, acessibilidade e confiança.

Assim, Angola teria a oportunidade de criar um Instituto Nacional de Identificação, Registos e Notariado (INIRN) moderno, inovador e sustentável, capaz de responder aos desafios da globalização, da digitalização e da cidadania contemporânea.

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