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Opinião

Saneamento básico em Angola: um privilégio para poucos ou um direito de todos?

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O saneamento básico é um direito fundamental e está entre as funções clássicas do Estado, ao lado da Segurança, Justiça e Bem-Estar. O acesso à água potável, ao tratamento de esgotos, à gestão de resíduos sólidos e à drenagem pluvial não são apenas questões de infraestrutura, mas elementos essenciais para a dignidade humana, a saúde pública e o desenvolvimento sustentável. Um Estado que não assegura saneamento básico adequado à sua população compromete o seu próprio progresso, pois a precariedade nesses serviços gera impactos directos na qualidade de vida, na produtividade económica e no aumento da vulnerabilidade a epidemias e pandemias.

A Constituição da República de Angola (2010), no seu artigo 21, estabelece como um dos objectivos fundamentais do Estado a promoção do bem-estar e da qualidade de vida dos cidadãos, incluindo o acesso a serviços básicos essenciais como o saneamento. Além disso, a Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 5/98) e a Política Nacional de Água (2002) definem directrizes para a gestão dos recursos hídricos e do saneamento ambiental, ressaltando a importância da participação comunitária no desenvolvimento dessas políticas.

Entretanto, apesar desses avanços normativos, a gestão do saneamento básico em Angola continua centralizada e pouco acessível à participação popular, o que dificulta a formulação de políticas ajustadas às reais necessidades da população. Inspirando-se na experiência brasileira com a Lei n.º 11.445/2007, que estabelece directrizes nacionais para o saneamento básico com forte ênfase na participação popular, é essencial reflectir sobre como Angola pode aprimorar a sua abordagem para garantir maior envolvimento dos cidadãos na tomada de decisões sobre saneamento.

O Cenário Actual do Saneamento Básico em Angola e os Riscos Sanitários

O acesso ao saneamento básico em Angola continua a ser um desafio crítico, especialmente nas zonas rurais e periurbanas. Segundo o Instituto Nacional de Estatística de Angola (INE, 2022), apenas 50% da população tem acesso a saneamento adequado, e nas áreas rurais esse número é ainda menor. O crescimento acelerado das cidades, como Luanda, Benguela e Huambo, tem sido acompanhado por problemas de infraestrutura, reflectindo-se na proliferação de assentamentos informais sem acesso a serviços básicos.

A precariedade dos sistemas de drenagem, recolha de resíduos e tratamento de esgotos está directamente ligada ao aumento de epidemias e pandemias, como cólera, malária, hepatite e doenças diarreicas. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2021) destaca que um sistema de saneamento inadequado é um dos principais factores de risco para surtos epidemiológicos em países em desenvolvimento.

A cólera, por exemplo, tem sido uma preocupação recorrente em Angola. Segundo dados do Ministério da Saúde (2023), surtos dessa doença são frequentes, especialmente em períodos chuvosos, quando os esgotos a céu aberto e a falta de água potável facilitam a disseminação da bactéria Vibrio cholerae. Em 2022, províncias como Luanda, Uíge e Zaire enfrentaram surtos de cólera que resultaram em centenas de mortes e milhares de internamentos.

A malária continua a ser a principal causa de mortalidade no país, com mais de 6 milhões de casos registados anualmente (OMS, 2023). A falta de saneamento adequado favorece a proliferação do mosquito Anopheles, vector da doença. Além disso, a ausência de redes de drenagem eficientes leva à formação de águas estagnadas, criando condições ideais para a reprodução do mosquito.

A Covid-19, apesar de não estar directamente ligada ao saneamento, também demonstrou como a falta de acesso à água potável e a estruturas de higiene adequadas pode agravar crises sanitárias. Durante a pandemia, muitas comunidades enfrentaram dificuldades para cumprir protocolos básicos de higiene devido à escassez de água e ao deficiente sistema de esgotos.

Dessa forma, a falta de saneamento básico não é apenas um problema ambiental, mas uma questão de saúde pública, tornando-se um factor agravante da vulnerabilidade da população a surtos epidémicos e pandemias. Para combater esse cenário, é necessário investir não apenas na infraestrutura de saneamento, mas também na participação activa da população no planeamento das políticas públicas do sector.

A Necessidade de Adaptação à Realidade Cultural e Urbanística

Para que o saneamento básico seja efectivo em Angola, é fundamental que a sua implementação seja adaptada à realidade cultural e urbanística do país. Em muitas comunidades angolanas, especialmente nas zonas periurbanas e rurais, a ocupação do solo ocorre de forma espontânea, sem planeamento formal, resultando em desafios específicos para a implementação de infraestruturas de saneamento.

Autores como Lefebvre (2001) destacam que o espaço urbano não é apenas uma construção física, mas também um reflexo das dinâmicas sociais e culturais da população. Assim, impor modelos rígidos de saneamento sem considerar as práticas tradicionais de gestão da água e resíduos pode resultar em resistência da comunidade e na ineficiência das políticas públicas.

A experiência brasileira com os Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB) demonstra que a participação da sociedade é essencial para garantir que as políticas sejam ajustadas à realidade local. Segundo Jacobi (2003), um dos principais factores para o sucesso das políticas ambientais é a inclusão dos cidadãos na tomada de decisões, pois isso fortalece o compromisso social e aumenta a aceitação das iniciativas governamentais.

Caminhos para um Modelo Participativo em Angola

Para Angola avançar na implementação de um modelo mais democrático e participativo na gestão do saneamento básico, algumas estratégias podem ser adoptadas:

✅ Criação de Conselhos Municipais de Saneamento Básico, compostos por representantes da sociedade civil, técnicos do sector e gestores públicos, garantindo que as decisões sejam discutidas de forma ampla.

✅ Descentralização da Gestão para transferir mais responsabilidades para as administrações municipais e capacitando-as para desenvolver planos locais de saneamento, com a participação directa da comunidade.

✅ Uso de Tecnologias Digitais para Transparência para possibilitará que cidadãos acompanhem a alocação de recursos e denunciem problemas no fornecimento de serviços.

✅ Educação e Conscientização Cívica para promover campanhas sobre o direito ao saneamento e a importância da participação popular nas políticas públicas.

✅ Fortalecimento da Cooperação Internacional para buscar apoio de organizações multilaterais para implementação de boas práticas e captação de recursos para o sector.

Finalmente, é necessário referir que o saneamento básico é um direito humano fundamental e um imperativo para a saúde pública e o desenvolvimento sustentável. A falta de acesso a serviços de saneamento agrava desigualdades sociais, facilita a propagação de doenças e compromete a qualidade de vida dos cidadãos.

Se Angola deseja um futuro mais justo e saudável, é urgente adoptar políticas públicas que priorizem a universalização do saneamento, a descentralização da gestão e a participação cidadã. Apenas com um modelo democrático e participativo será possível reduzir os impactos das doenças relacionadas à falta de saneamento e promover uma Angola mais digna para todos.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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