Análise
Sahel: quando a geopolítica global transforma uma região em campo de batalha
A declaração do Presidente senegalês, Bassirou Diomaye Faye, de que fez “tudo para trazer de volta” Mali, Burkina Faso e Níger à CEDEAO, mas que “esses países são livres de escolher seu destino”, revela mais do que uma frustração diplomática. Expõe a tragédia de uma região refém de interesses globais, governada por juntas militares ineficazes e abandonada à lógica perversa de que a instabilidade beneficia a todos menos aos africanos. Enquanto o Sahel afunda em golpes, terrorismo e pobreza, potências estrangeiras transformam seu solo em tabuleiro de xadrez, e líderes regionais assistem, impotentes, à erosão de um projecto continental que já foi chamado de “Renascimento Africano”.
O Sahel Não É Uma Tragédia Natural: É um Laboratório Geopolítico
A retórica de que o Sahel é “ingobernável” devido a fatores étnicos ou climáticos é uma falácia conveniente. A realidade é que sua instabilidade é alimentada por uma convergência tóxica de ambições externas:
1. Rússia: O Mercenário com Bandoleira de Libertador
O Grupo Wagner, agora sob novo nome mas mesma prática, atua como um parasita da soberania. Oferece proteção militar a juntas em troca de ouro, urânio e legitimidade política. Sua narrativa antiocidental ressoa em populações traumatizadas pelo colonialismo francês, mas seu objetivo não é a emancipação: é a exploração. Enquanto civis morrem em ataques jihadistas, as minas de Níger alimentam a máquina de guerra russa na Ucrânia.
2. França e UE: Entre o Remorso Colonial e a Hipocrisia Securitária
A França, que há uma década liderava a intervenção militar no Mali, retirou-se deixando um rastro de ressentimento. A UE, por sua vez, financia projetos de desenvolvimento com uma mão e patrocina acordos de contenção migratória com a outra. A prioridade não é estabilizar o Sahel, mas evitar que o caos transborde para o Mediterrâneo.
3. China: O Silêncio Calculista do Novo Imperialismo
Pequim evita condenar golpes, desde que contratos de mineração e infraestrutura sigam intocados. Seu pragmatismo amoral faz da China um parceiro indispensável para juntas isoladas, mas aprofunda a dependência económica num modelo extrativista que repete os erros do passado colonial.
4. EUA e Golfo: O Jogo Duplo do Contraterrorismo
Washington mantém bases no Níger para monitorar jihadistas, mas ignora que a militarização alimenta recrutamento extremista. Enquanto isso, Emirados Árabes e Arábia Saudita financiam redes salafistas, numa competição velada com o Irão pelo controle da identidade religiosa saheliana.
Neste contexto, as juntas militares são menos “salvadores da pátria” e mais intermediários de um neocolonialismo multipolar.
Governação Militar: A Farsa por Trás do Uniforme
Os líderes das juntas justificam-se como únicos capazes de combater o terrorismo. Os fatos desmentem a narrativa:
– Mali: Após dois anos de parceria com a Rússia, 40% do território está fora de controle estatal.
– Burkina Faso: Ataques jihadistas mataram 8.400 pessoas em 2023, o dobro de 2022.
– Níger: Sanções da CEDEAO agravaram a inflação (12,5%), enquanto a Rússia extrai urânio a custo reduzido.
A militarização da política não trouxe segurança, mas consolidou regimes repressivos. Jornalistas são presos, protestos criminalizados e minorias étnicas (como os fulani) perseguidas sob acusações de colaboracionismo. A “soberania” pregada pelas juntas serve para mascarar acordos espúrios com mercenários e corporações estrangeiras.
O Futuro do Sahel: Quatro Cenários à Luz de um Presente Sombrio
1. Consolidação Autoritária (40% de probabilidade):
Juntas mantêm-se no poder com apoio russo-chinês, normalizando a exceção como regra. A CEDEAO, dividida, aceita reintegração sem democratização. O jihadismo persiste, mas é contido em áreas rurais. O Sahel torna-se um arquipélago de Estados clientes, onde recursos naturais financiam elites e mercenários.
2. Colapso e Fragmentação (30%):
Crise económica e revolta popular levam a novos golpes ou guerra civil. Jihadistas expandem territórios, replicando o cenário líbio. Potências regionais (Argélia, Marrocos) intervêm, transformando o Sahel num proxy war.
3. Transição Frágil (20%):
Pressão regional e protestos obrigam juntas a eleições supervisionadas. Governos civis emergem, mas sem capacidade real de romper dependência externa. A UE e EUA retomam ajuda, mas sob desconfiança popular.
4. Escalada Regional (10%):
Disputas por água e minérios levam a conflitos entre Estados do Sahel. A CEDEAO fragmenta-se, enterrando o projeto de integração económica africana.
Conclusão: O Sahel Precisará de Mais do Que Pensamentos Positivos
A crise do Sahel é um espelho do fracasso colectivo africano. Enquanto líderes da UA discursam sobre “soluções africanas”, permitem que o continente seja esquartejado por mercenários, jihadistas e corporações. A retórica antiocidental das juntas é tão oca quanto os acordos de defesa assinados com Paris: ambas as partes usam o Sahel como cenário de um teatro onde só os civis morrem de verdade.
Se queremos evitar um futuro onde o Sahel seja apenas um nome esquecido em manuais de geopolítica, é urgente:
– Condicionar ajuda internacional à transparência em contratos com potências estrangeiras.
– Criar uma força regional sob mandato da UA, não da CEDEAO, para evitar duplicação de interesses.
– Priorizar educação e emprego jovem em vez de gastos militares.
O Sahel não precisa de salvadores estrangeiros ou uniformizados. Precisa de africanos que lembrem às suas elites que riqueza não se mede em barris de urânio, mas em vidas poupadas. Como diz um provérbio tuaregue: “A areia do deserto não esconde os ossos, só os enterra até o vento decidir revelá-los”. O mundo está a ver o que o vento trará.