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Crónica ideal ao Domingo

Por trás das crónicas

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[“O que mais me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons” – Martin Luther King Jr.]

Por: Edson Kassanga

Tal qual um novelo desenrolando-se em inúmeros ciclos, enquanto a sua linha dele se desprende, assim é a inocência ao longo da vida. No início, a pureza da inocência é mui imponente que nos põe distante do alcance da culpa inerente às makas pelas quais se debate a comunidade de que somos parte. Entretanto, enquanto a meninice se afasta e o novelo emagrece, permitindo maior extensão e elevadas conexões à sua linha, a pureza da nossa inocência desvanece. Já não são poucas as nossas experiências, já não são poucos os nossos conhecimentos, já não são poucas as nossas relações com outras pessoas; enfim, já não podemos nos considerar de todo inocentes pelos males que somam e seguem na nossa banda.

Porque a partir daí, dessa fase para lá das fronteiras da infância, dispomos de algum poder hábil em abrandar ou até mesmo de banir esses males. E se apesar disso, cruzarmos os braços envolto dum espectro completo de serenidade, escusando de usar o poder em nossa posse, também teremos as mãos encharcadas pelo encarnado fluído, também seremos culpados pelos flagelos que suscitam sofrimento e denso desespero às pessoas com as quais partilhamos o mesmo chão.

Muito antes do tempo começar a roupar, de jeito dissimulado, a cor do meu cabelo, desvendei algo sobre as relações humanas. Elas obedecem normas que resultam de uma renhida e constante competição entre opiniões. Por via de regra, prevalecem as razoáveis e más opiniões, porque as boas opiniões desconseguem atravessar o desfiladeiro do silêncio, ou não têm sido defendidas de modos a lançarem as demais ao descrédito. Devido à essa descoberta, me senti estimulado em transformar audível o mudo brado que dilatava dentro do meu peito.

Mais do que nunca, a dor de outrem trespassou a ser minha, mais minha. A medida que os meus sentidos me fizessem entender que mais um menino perdeu os membros por conta do trabalho infantil, que mais um recém-nascido foi achado no lixo, que mais alguém optou pelo suicídio como passaporte para o além, que mais um cidadão inofensivo foi alvo do disparo feito por um polícia, que mais uma mulher foi toda carbonizada pelas mãos do próprio marido, que mais uma cândida candengue foi assassinada após ter sido violada, ascendia a minha dor. O espanto tomava-me de assalto, sangrava meu coração vulcão em erupção. Parecia-me cada vez mais mais urgente fazer algo que pudesse mudar esse cenário de intensa desgraça. Mas o que fazer?  Como fazer?

Ao encalço de respostas a essas perguntas, perpassei, pouco e pouco, a penetrar os olhos na multidão com mais atenção, multidão que de tanta pressa descalçava o esmero em ver aonde iria pôr o pé no próximo passo. Imaginava nela daqui a bwé de anos e falava em pensamento comigo mesmo: “Essa imensidão de gente será substituída por outras pessoas. Para ela está certamente reservado um destino debaixo da chão- desprovida do fôlego vital, à mercê dos salalés e numa dura(doura) viagem de retorno ao pó.” A multidão estará por baixo do chão que antes pisou.

Sei que comigo não será diferente, não existem outros rios. E se existirem, todos eles hão-de desaguar no largo lago da morte, quer suas águas corram para norte quer corram para sul. Eu estava ciente que estaria, em alguma incógnita data, nesse doloroso, sombrio e enigmático regresso do qual ninguém ficará isento, nem será alvo de qualquer tratamento exclusivo.

Assim, por mergulhar a mente nessas águas tão claras de escuridão, matutava sobre a geração do porvir. Almejava muito que o facto de eu ter nascido mais cedo tivesse alguma utilidade para quem estiver cá, no mundo dos vivos, quando eu já não puder passar de meras lembranças.

No período em que essas reflexões começaram a povoar minha mente, as chamas da minha paixão pela Literatura já iluminavam quase treze centímetros do céu escuro, a julgar pela emoção com que eu falava e escrevia sobre alguns livros, pela minha passagem em associações de Literatura, assim como a julgar pela patologia de que padecia em comprar livros. Ou seja, dadas pessoas já teciam considerações denunciando a minha utilidade para a escrita. Todavia, eu não via em mim talento para a escrita e nem acreditava na possibilidade de usá-la para mudar o cenário de intensa desgraça. Tamanha era a minha incredulidade.

Porém, em 2017, precisamente numa fase em que esse ano ainda cambaleava tal qual uma gazela recém-nascida, certas opiniões relacionadas com as minhas habilidades à escrita moveram para a lonjura a minha incredulidade, assim como faz o vento às nuvens. Nesse ano, fui finalmente convencido que possuía algum potencial para a escrita e que, se me esforçasse, poderia florescer nessa actividade cujas labaredas derrotam a insensibilidade, o tempo, a distância, a ignorância, etc.

Então, decidi fazer da escrita o meu despertador e minha predilecta canção de embalar. Desta feita, utilizando-a como veículo para tentar me redimir da mea culpa pelos males que assolam a nossa sociedade, tentar abrandar ou acabar com os mesmos, tentar tornar as minhas opiniões mais convincentes, tentar evitar com que os nossos sucedâneos repetissem os equívocos que já cometemos; enfim para tentar construir um catálogo da vida e deixa-lo disponível para as gerações vindouras.

Em consonância com os diminutos conhecimentos sobre Literatura e Jornalismo que possuía na altura, aos quais tive de agregar aquilo que algumas pessoas diziam a respeito do meu carácter, escolhi a crónica/artigo de opinião como género ao qual ia dedicar-me com mais afinco. Contudo, a única coisa que eu tinha em mãos era praticamente, o desejo, um desejo a extrapolar. Pouco ou patavina sabia relativo à crónica, eu não detinha poder algum.

Ainda assim, o mesmo desejo levou-me para junto de pessoas com tarimba nas veredas do género escolhido. Admito que com elas aprendi muito; aliás, continuo aprendendo. Ademais, ainda no mesmo ano tive, porventura o mais importante, a oportunidade de mostrar para o meu país (e não só) aquilo que aprendi, dando voz ao brado mudo refém em meu peito. Tal chance, algo para qual eu já ansiava porém não me sentia pronto, impeliu-me a ter sede quase insaciável de me superar a mim mesmo.

Com efeito, passei a despender mais horas em organizar informações, informações emaranhadas no meu cérebro. Relembrava as lições que a vida directa ou indirectamente ensinou-me, relembrava e buscava conhecimentos científicos, estabelecia relações entre ambos saberes e, por fim, trazia à tona as opiniões de valor que pôde escrever decorrente desse processo.

Os intentos essenciais dessa exposição eram o de ascrescer filamentos às minhas opiniões, experimentar e aprimorar performances de expressão, bem como o de alterar ou suprimir as mesmas opiniões, caso os argumentos contrários vindos de outras pessoas me convencessem. A verdade é tal qual um poliedro, tem vários vértices e é impossível vê-los todos ao mesmo tempo, pela mesma lente. Em função disso, homem nenhum é capaz de observar todos eles simultaneamente. Há sempre alguma coisa a nos escapar.

Hoje, trespassados uma trindade de anos, tenho a certeza que a actividade de escrita fez-me sorrir para vida com um riso mais extenso e lustroso. Além das reacções agradáveis que me aportam à volta dos meus textos, sinto uma evolução multidisciplinar quando tomo a decisão de sopesar os textos de ontem com os actuais. Quanto a isso devo agradecer efusivamente ao Correio da Kianda, que, apesar de não ter sido o primeiro meio de informação massiva a publicar os textos de minha autoria, deu o tom dourado com que actualmente se escreve e se lê EDSON KASSANGA.

Portanto, quanto maior for a nossa idade, maior é a nossa capacidade de influenciar o fim/abrandamento de práticas nefastas à nossa sociedade, considerando as multiformes lições que a vida vai nos ensinando com o desenrolar do tempo. Por isso, acho ser nossa (dos kotas) a sublime missão de garantirmos uma vida mais próspera para a futura geração. É a única e possível forma de atrelar valências ao facto de termos nascido mais cedo que aqueles que vêm atrás de nós, os candengues.

Eu procuro fazer a minha parte por intermédio da escrita, porquanto acredito que as relações interpessoais são dóceis às regras oriundas de um duelo de opiniões na qual impera mais a forma de defendê-las do que o seu tipo. O meu intento é fortificar as boas opiniões com tonalidades eloquentes de modos que a véspera da minha viagem de retorno ao pó seja tranquila. Com menos quilapes possíveis e num contexto igual ao da vovô Xica quando diz: “Já posso morrer…” (Waldemar Bastos em “Velha Xica”). Essa é a crónica por trás das minhas crónicas.

FESTAS FELIZES PRESTIMOSO LEITOR E OBRIGADO PELA LEITURA!

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1 Comment

1 Comment

  1. António Daniel Libermann

    28/12/2020 at 8:43 am

    Grande trabalho e o meu muito obrigado.

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